terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O prazer foi todo meu


Da janela o sol tentava ser atraente. A brisa, de longe, lançava a promessa de uma sensação térmica mais pacífica. Mas daqui, de bem perto, minha pele pálida e fina pedia para eu desistir de vultosa ousadia. O sofá era bom o bastante para uma tarde de sábado. Além de que o movimento, mesmo discreto e sutil, convida o suor e assusta o humor que já quase não me alcança.

Ao ouvirem o dilema e perceberem que estavam geograficamente no meio dele, as pernas resolveram definir o fim daquela disputa enfadonha. Ordenaram que me pusesse de pé e fosse mesmo andar. Isso, sem apertar os olhos e sem julgar a mãe alheia. Andar de verdade, vendo a paisagem mudar. E sempre mudar. Ver o que tem até onde elas agüentam ir sem pensar no que farão para voltar.

Obedeci. Ando meio obediente, é verdade. Tenho pensado em criar ordens, se é esse o clamor maior, para depois apreciar os dominós desmoronarem. Um após o outro. Organizados e fatais. Adoro a desordem que procede a ingênua sensação de ordem plena. É como devorar um petit gâteau após padecer semanas em um sofrido regime.

Devo ter andado muito. Parei quando me encontrei acompanhada apenas de duas pernas doloridas. Sentei com alívio por saber que ainda havia chão ali. Preciso revelar que arenoso e salgado, mas um chão de verdade e até firme.

Não sei quantas pessoas cruzaram a minha visão e nem lembrei que a passagem delas revelava o correr manso e incansável do tempo. Esqueci dos 30 e muitos graus, do cabelo desarranjado pelo vento e de algumas lágrimas que, por muitos motivos fúteis, suicidaram-se do meu queixo. Tentei imaginar que no ato não havia desespero ou um sofrer dramático, só uma gana bonita de liberdade.

Até que alguém se aproximou mais do que os outros passantes. Eu te conheço? Ah, não. Ele só está tirando fotos. Deve ser turista. Mas esse jeitão esquisito...espere aí, eu te conheço? E antes que insistisse na dúvida ele acabou com ela sentando-se ao meu lado. E eu nem o convidei. Você estava me seguindo? Ele riu, desconversou e perguntou se eu estava só. Eu estava me fazendo companhia, uma ótima companhia, mas respondi olhando para os lados e mostrando que não havia ninguém, além dele, com jeito - ou distância- de quem faz companhia.

Obrigou-me a caminhar até mais longe. Mandou uma conversa de que sempre ia lá quando criança. Acreditei e fantasiei-o esquisitinho brincando com fedelhinhos, lambuzando-se naquela areia grudenta e correndo para lavar-se no mar. Tentava, mesmo assim, permanecer só, mergulhada em idéias mirabolantes e desejos atrevidos. Mas ele parecia fazer questão de nos meter em um mesmo pensamento. Cansada, livrei-me por instantes da minha má vontade e resolvi dar trela ao maluco que estava ao meu lado.

Acabei rindo. Ele me emprestou umas idéias infundadas e despretensiosas e eu as transformei em qualquer esperança, em uma alegria sem razão. Ele era um avesso tão colorido e vibrante quanto a face que se põe à mostra. E ele sabia sorrir de si, sem deboche. Era um riso sério, de quem acredita no que é.

Levou-me de volta para casa. Fez questão de fazê-lo por um caminho diferente do que eu havia feito para ir. E fez certinho, como se soubesse do meu dissabor em fazer caminhos de ida invertidos. Quem contou para ele que eu precisava de tudo aquilo, justo daquele jeito e naquele momento? Acho que cheguei a agradecer, mas talvez ele nem tenha ouvido. Obrigada por ter me seguido, eu poderia ter dito.

Usei o curto caminho até a minha casa pensando que eu deveria dar à sua boca o bem que ele fizera à minha cabeça, naquela tarde. Não conseguia evitar esse pensamento oportunista, e não me peça explicações mais.

Aqui. Minha casa é essa, lembrei. Olhei-o e me aproximei, mas o meu juízo guiou-me até sua bochecha. Ele falou que era sempre um prazer rever-me. E eu só consegui dizer que o prazer tinha sido todo meu.

E foi todo meu mesmo, bom menino.


Rafaela Fernandes