quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz Álbum Novo


Ela não havia encontrado nada muito atrativo para gastar o tempo que acreditava ser seu. Tudo bem, ela também sabe que não procurou. Ou que procurou sem querer encontrar.

Mas eu estava na parte em que ela não havia encontrado nada muito atrativo.

Foi então que resolveu - guiada pela certeza duvidosa de que iria sentir-se melhor - fazer as horas passarem mais ligeiro enquanto olhava fotos em um álbum antigo. Talvez de um ano atrás, talvez bem mais do que isso. Não faria diferença. Mas nada tão velho a ponto de não resgatar memórias de cheiros, sensações de sabores ou dicas de impressões. Nada com poeira suficiente.

Encontrou aquele aniversário no qual um batalhão fora acordá-la. Oito da matina. Pijama velho, cara amassada, um delicioso bolo de chocolate, um pedido e... ‘clic!’. Não faz tanto tempo assim. Ela já improvisava o mesmo pedido que ainda faz em todos os bolos, de todos os seus aniversários. Ou, tudo bem, quase o mesmo pedido. Fica-se velha, fica-se menos exigente. É o que parece à moça e o que confirma, com simpatia, os olhos azuis e chuvosos da sua avó.

Ah, sua viagem ao exterior! Adolescente bobinha, sem muitas convicções, ou nenhuma delas, amigos estranhos, cidadezinha simpática, alguns agasalhos, piercing no nariz e... ‘clic!’. Ela lembrou-se de como era sentir-se um pouco mais dona de si, mesmo desconhecendo deveras o sentido disso. Conseguiu até sentir-se alheia à platéia e imune aos julgamentos, por mais uma vez. Lembrou-se, quase inevitavelmente, de um garoto da época. Mas não havia fotos dele. Não, nenhuma. Nem de relance, nem por engano. Contudo ela o tinha na memória e quis lançar essa lembrança de volta ao álbum. Não queria perdê-la por aí. Vai lá saber do que acontece por aí.

Depois vieram muitos vestibulares e quase “não foi desta vez” demais. Viu fotos de quando deixou o colégio com aqueles olhos de horror. Olhos de quem não fazia idéia do lugar onde estava indo. E, lógico, isso incluía festa de formatura, muito álcool e centenas de brindes a sei lá o quê. Os 18 anos e a falsa impressão de ser maior renderam uma centena delas. O primeiro carro – bem melhor do que o que ela pensou querer e merecer – apareceu de coadjuvante em umas. Algumas paixões, talvez duas. ‘Clic, clic, clic!’

Daí até a universidade não encontra tantas imagens, que não umas com a pele sem sol, um rosto tomado pelas olheiras e cabelos numa versão mais enxuta. Com a universidade ficam alguns sinais de cansaço, mas se percebe o pintar das novas companhias, a freqüência em novos lugares, que soavam e cheiravam melhor do que os antigos. Nada tão subjetivo, bastava ver e sentir. E viu, no álbum, sua vida universitária recriando sua vida pessoal em absolutamente qualquer aspecto. Guardou isso em um, dois... pouco mais que três ‘clic’s!’.

De uma forma ou de outra sabia, estava tudo lá. Guardado, recente, quieto ou não. Alguns diriam, mesmo vendo, que não tinha sido bem assim, garota fantasiosa. Outros, comparando o dia da surpresa de aniversário com o fim do último ano, balbuciariam qualquer reclamação. Como ela piorou. Ela não é mais tão colorida assim. Nossa, agora ela ficou completamente louca. E diriam baixo, para que ela não ouvisse e não ficasse ainda mais amarelinha.

A lente podia mudar, e ia, assim como ela. Assumir a sua permissividade para o novo era virtude cultivada com muito apreço. Mas o que ela queria mesmo era ver o tempo passar. E, mais do que isso, queria ir junto com ele, no ritmo por ele ditado. Sabia que veria o dissolver de grandes amizades e o manchar de verdadeiros amores. Veria alguns dos seus irem mais cedo, outros chegarem tarde demais. Não estava assustada, não estava alegre nem absolutamente triste. Estava viva. Acima das lembranças e das sensações, estava surpreendentemente viva e ciente disso.

Rafaela Fernandes

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Feliz Desnatal


Depois de 19 anos, ela resolveu dar-lhe uma chance. Quem sabe, a essência do épico seria mais forte que o convencional. Apenas desta vez.

Resolveu contribuir de certa forma. Às 8 horas da noite, ela fez um coque no cabelo, reparou a franja com uma tiara, pôs seus óculos e caminhou com seus pés descalços e recém pintados até a cozinha. Juntou um punhado de ingredientes e, como diria aquela tia, “pôs a barriga no fogão”.

Até que, no discorrer da receita, faltara-lhe o principal. Como alguém fritaria rabanadas sem óleo? E ela olhava no relógio, o qual marcava 8 horas e 8 minutos, e correu, com seus pés descalços e com seu coque já pendendo à culpa da gravidade, para pegar a chave do carro. Que sorte a dela!

Ao abrir a porta, encontrava-se ali uma boa parte dos seus parentes. Com certeza, vestidos e calças sociais, sapatos altos, jóias e perfume francês não competiam com um coque mal feito, jeans, havaianas e colônia Johnson. Que sorte a minha, ela pensou. Depois de dar boas-vindas, de maneira enfezada com a situação, ela correu velozmente e apanhou tudo o que precisava.

Fritou as rabanadas e, finalmente, deu-se a liberdade de se sentir mais por dentro deste grande evento. Aí, ela subiu com seus pés novamente descalços e cabelos já ao rosto para construir a máscara natalina de todo ano. Mas hoje, seria diferente, pensou ela. A máscara seria mais suave. Para isso, resolveu então não passar lápis contornando seus pequenos olhos negros. Tomou um banho demorado, soltou seu coque para revelar bonitos cachos clareados, pôs uma cor no rosto. Fechou seu vestido e calçou a sandália que lhe conferia uns 10 centímetros a mais, e desceu para atuar naquilo que ela menos venerava: cumprimentos.

Após uma taça de vinho, tudo se tornaria mais fácil. Veio os salgadinhos, veio as rabanadas – que, por sinal, fizeram muito sucesso – vieram os presentes e, por fim, o jantar. E ela concluía, com o passar das horas, que não havia possibilidade do Natal tornar-se diferente com o passar do tempo, com o crescer da idade e com o aumento da maturidade. Estava enganada.

“Oi. Você me ligou?”
“Liguei, mas você não quis atender, né?”
“Me desculpe.”
“Foi só pra te desejar um feliz Natal de novo.”
“Jura?”
“Juro, juro.”

E assim, com um sorriso natalino por fim verdadeiro, que lhe escorria pelos lábios pintados, ela deitou no sofá e adormeceu, enquanto muitas taças de vinho e muitas ceias ainda eram servidos.

Beatriz Noele
Nota da autora: o escrito acima é baseado em fatos reais.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Um panetone, um bom vinho e só


Ela resolveu ignorar tudo o que lhe soava provável. A vizinha, mesmo não chamada a opinar, resolveu derramar seus achismos ali, no sofá da sala de estar. Disse que aquilo nunca iria funcionar, que logo feneceria e a garota iria se ferir novamente. Pobre garota, sempre semeia o fim dos seus casos justo assim que eles nascem, pensava a vizinha alcoviteira. Pobre vizinha, sempre afaga as bebedeiras do marido, as crises psicóticas do filho mais velho e a hiperatividade do seu único neto com os problemas das portas ao lado, respondia, em telepatia, a garota. Assim que a senhora terminou com seu discurso imbuído de causas exclusivamente suas, a moça pediu para ficar em par com a sua consciência. É, vizinha, só eu e ela, precisou reforçar a menina.

Quando lhe foi entregue a paz do eco, ela se pôs a escrever. As impressões deslizavam cabeça, peito, braço, ponta dos dedos e bico da caneta com uma fluidez espantosa, qual as confissões de um beberrão - recém traído por sua Amélia – ao garçom-vítima mais próximo. Em poucos instantes, sem qualquer sinal de culpa ou pudor, ela foi se contando ao verso de uma prova do seu pré-vestibular, usando uma letra torta e quase incompreensível. Colocou lá que precisava dele, assim, com essas palavras. Mas que não queria aquilo que a vizinha via. Precisava – e desejava - a versão mais inédita que havia naquele moço.

E explicava, como se falasse com o nariz dele no seu, que queria tudo que existia para lá do seu ar cortês de sempre, das suas frases de auto-motivação fracas, dos seus pés calçados e firmes demais no chão, do seu olhar fixo que implorava por um rumo convincente e dos seus abraços compridos e cheios de espaços para o vazio. E, enquanto ia deixando isso ficar em um papel, lembrava-se das palavras da vizinha para se lembrar novamente de que não queria mais resistir àquele homem e que sequer sentia-se tentada a reclinar pelas razões racionais daquela mulher de chinelos felpudos.

Escrevia e riscava imediatamente algumas pieguices e umas juras de amor até amanhã, como se temesse que alguém, quem sabe ele, visse e descobrisse como aquele contexto a fazia mulherzinha. Ela sabia ser franca consigo. Sabia bem de seus sentimentos e eles não eram confiáveis nem muito menos estáveis. Ela, pois, não se dava o direito de envolver alguém neles tão estreitamente, se amanhã tudo poderia não fazer mais sentido algum. Ia, então, adiando o momento de fazer da paixão uma dinâmica de dois e distraindo-se com as suas palavras perfumadas e com os seus disfarces metafóricos.

No momento em que aquele verso de folha mostrou-se repleto, ela sentiu que era hora de parar. Releu tudo que contava as palavras, percebeu que algo se perdera no caminho - talvez no peito, quem sabe no ar -, não se importou, refez tudo com uma letra mais decifrável, vestiu uma roupa fácil, colocou o papel no bolso mais fundo e saiu. Foi até a casa dele. Constatou que ele estava, colocou a folha debaixo da porta, tocou a cigarra - depois de rir de si mesma e da sua tolice - e escondeu-se antes de ele aparecer. Observou-o sair e procurar inutilmente o remetente na folha e nas redondezas. A curiosidade dele, conforme ela previu, fez com que a leitura se desse já, com um pé na calçada e outro ainda em casa. Ela pôde ver o sorriso ir escapando daquela boca com jeito de maçã. Constatou que dessa vez era um sincero, até meio incrédulo, meio emocionado... Inédito como ela desejou, enfim. Ele não ia chorar, ela sabia. Mas iria logo saber quem escrevera e isso bastava. Você agora sabe de mim, falou ela baixinho, como se houvesse chance de ele escutar.

Logo que viu e ouviu a porta fechar, a garota cruzou a esquina. Comprou um panetone e um bom vinho e voltou para casa. Voltou para si, para um quarto vazio, uma televisão sem som e um som sem fim. Lambuzou-se com a sensação que não sabia até onde era cisma, até onde era coisa de coração e que, por bem, preferia nem saber. Queria apenas, e não era pedir muito, que o sorriso daquele homem durasse na sua memória pelo menos até que ela acabasse com o panetone e o vinho acabasse com ela. E aí sim, Papai Noel. Aí sim e só aí ela teria o tal do feliz natal.


Rafaela Fernandes

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Do lado de cá


Disseram-me que o mundo estava de ponta-cabeça. Que o ser de humano tinha quase nada, que era mais um bichinho esquisito das cavernas, sem previsibilidade, sem limites e sem qualquer ensaio de respeito. E contaram, não por uma única vez, que eu era por demais boba e fraca e que bem antes de ser tarde, de ser noite, eu seria esmagada e debochada por um, ou tantos dos que acreditam que o nosso mundo hostil é dos astutos, dos infiéis, dos insensíveis e só deles.

Não acreditei. Não acreditei e trancafiei-me, convenientemente, no meu aposento azul. Nesse mundo onde os canalhas são doces e, por isso, quase irresistíveis, onde as crianças chatas são motivos para contos, as formigas compõem um modelo de vida invejado, samba é pretexto para hipérboles sinceras e a solidão está sempre tão perto, que a gente casou com ela. Não me recordo de ter esquecido alguma porta ou janela abertas, nem de ter feito qualquer convite. Até mesmo o sol há muito não entra aqui – e, se vistes a minha cor, não duvidarias disso -. Evitei algumas idéias de visitas, avisei que estava ocupada com coisa alguma e menti dizendo que vivia bem acompanhada do senhor ninguém. E eles também acreditaram.

Ah, não! Desista dessa cara de dó. Estar assim não é como estar na sua algazarra, mas também não é de um todo ruim. Vive-se conforme a sua lei, fala-se apenas na hora em que a sua voz não te irrita, deixa-se os cabelos desorganizados, usa-se roupas velhas e ninguém vai reparar e não se come exatamente o que quer, por meros motivos de saúde, mas se faz isso na velocidade e na hora que te convém.

Eu não me convenci das verdades que me sussurraram, achei que estava só no meu azul, jurei que tinha paz incorruptível e imaginar o horror que se instalou quando tudo isso se demonstrou ineficaz não é tão difícil assim, mas também não precisa me chamar de boba e fraca, que disso eu já estou sabendo. Em vez de proferir impropérios, experimenta imaginar o que faz alguém quando um total estranho entra não sei por onde, mexe em sei lá o que, talvez até coma do seu feijão e beba do seu leite matinal para depois sair contando que sabe de você até para quem não quer saber. E só depois que ele bate a porta você descobre que teve tempo para bagunçar toda casa, pintar alguns absurdos na sua parede e pôr um som barulhento, de péssimo gosto, que te traz uma tremenda dor de cabeça.

E depois que isso acontece? Depois é hora de acabar com a balbúrdia e arrumar esta casa. Jogar um sambinha amarelo que ponha cor na nova pintura das paredes, tomar um banho para amolecer a cabeça e fazer firme o coração, trocar a roupa e repaginar a alma. Abrir as janelas e destrancar a porta. Deixar que o sol entre para acabar com esse gelo e que a brisa escape para bagunçar essa ordem hipócrita. Quero mesmo é que o vizinho saiba mais e o que o estranho entre quando julgar por bem.

De repente é nessa hora que alguém vestindo roupas largadas toca a sua campainha - ignorando a idéia da porta aberta - e te traz uma flor no peito e um coração na mão. Então você estranha, sente-se vermelha e antes de achar tudo muito cafona aceita aquele triângulo pulsante a fim descobrir o que ele pode fazer por você no domingo à noite, na terça-feira engarrafada, no filme do feriado ou no auge daquela gripe desencorajadora.

Não quero saber quem é você, de onde veio ou o que sabe sobre mim. Só entre.

Entre só e encoste a porta.

Rafaela Fernandes

sábado, 29 de novembro de 2008

De cabeça para baixo


Hoje, eu acordei e, em vez de sair pelo lado direito da cama, como o habitual, parei um minuto para pensar em como seria o meu dia se eu fizesse tudo ao contrário. Bom, o que me prendeu por alguns instantes foi a existência de um ditado que se refere ao mau humor de um ser, quando o mesmo não “levanta com o pé direito”.

Minha curiosidade me foi suficiente para testar. Virei-me para o outro lado da cama e lancei meu pé esquerdo recém podado (havia visitado o podólogo no dia anterior) em direção àquele chão gélido, à espera de encontrar pantufinhas de princesa para aconchegá-lo.

Mas as tão sonhadas pantufinhas (leia-se havaianas de dez anos atrás) haviam ficado do lado direito da cama, certamente. Primeira decepção do dia: calafrios. Essa eu podia superar. Resolvi, então, sentar-me em uma cadeira que não fosse a minha na cozinha, para deliciar a minha refeição preferida, a qual, infelizmente, eu saboreava rápido demais, pois tinha aula. Daí, eu esqueci a reportagem que passava na tevê e mergulhei fundo nos meus pensamentos quentinhos.

Quantas vezes eu fazia sempre a mesma coisa todos os dias? E não me refiro só a levantar pelo lado oposto da cama ou sentar em um lugar diferente do de costume. Mas, pense um pouco. Aquela velha música dos Titãs é de extrema validez para este momento de reflexão.

“Devia ter arriscado mais”. De fato! A gente sempre faz as mesmas coisas diariamente, reclamamos da nossa estabelecida rotina e o que fazemos para mudá-la? Nada. Apenas acostumamos nosso corpo e nosso cérebro que tem de ser assim. Quando não se tem tempo, rezamos pelas benditas férias, e quando estamos de férias, do que resmungamos? De não se ter nada para fazer.

Nunca estamos satisfeitos, isso é verdade. Porém, raramente temos a atitude de levantar com o pé esquerdo para mudar o curso dessa história. Por que não nos darmos férias no meio dessa rotina insana? Por que não acordar e pensar “tenho mil coisas para fazer, mas hoje vou pegar meu carro e deixá-lo me levar até onde a gasolina der.”? Por que não levar seus estresses para afogar no mar, enquanto acompanha o Sol pronunciar seu adeus até o próximo dia?

Eu tenho uma resposta. A gente se agarra demais nessa rotina e temos medo das conseqüências que uma mudança possa trazer a nós.

Lembre-se que apenas com essas alterações, com as decepções e desilusões, o aprendizado humano se torna mais profundo. Uma mudança que nos traz conseqüências ruins jamais será esquecida ou repetida. E uma mudança boa será incluída no seu velho dia-a-dia, para lhe dar uma cara nova e diferente.

E permita-me lhe dar ainda outro conselho. Deixe para pensar essas coisas à noite, quando estiver deitado e preparado para dormir. Ou senão você chegará atrasado à aula.
Ah, droga.

Beatriz Noele

domingo, 16 de novembro de 2008

Se eles não vêem, a gente inventa


Acordou, olhou-se miseravelmente ao espelho e achou.

Ali estavam os olhos através dos quais se via um reflexo distorcido e duvidoso. Os olhos que, vermelhos como a fumaça da noite anterior e manchados pelo preto que já precisava de retoque, pareciam prostituídos quando vistos por eles mesmos. Uns que eram intrusos e infames quando contavam ao mundo que enxergavam a euforia das ruas em um quadro descolorido, em uma arte abstrata de mau gosto. E igualmente impertinentes quando queriam obrigar os outros olhos, os dos outros, a enxergarem sob sua lente mofada. Olhos malditos, marrentos.

Viam mal qualquer coisa que não estivesse muito próxima e, portanto, declaravam-se cegos para as tais. Ficava mais fácil para explicar. Mas, se do distante, que era distante demais, não enxergavam nada além de um contorno impreciso, imaginavam. Ah, e que perigoso era fazer imaginar quem foi feito para a tarefa de ver. E era perigoso porque era fácil acreditar naqueles olhos quando, derretidos de ilusão, supunham que o que desejavam ver era perto, estava seu. E fantasiavam que o muito que não viam compunha um todo generoso, um todo de carinho e devoção. Não havia fingimento nem mau tempo no lugar em que esses olhos não viam. Era um não ver sincero e inspirador.

Mas às vezes criar trazia aos ditos olhos umas e tantas inevitáveis lágrimas de angústia e, abarrotados, eles pestanejavam para fazê-las do mundo. Elas caiam para lavar aquele rosto de mentiras enrugadas e contar que, agora, tudo estava quieto e sereno, como a calmaria que precede uma próxima tempestade.

Acordou, olhou-se miseravelmente ao espelho e teve certeza: precisava encontrar os seus óculos.

Rafaela Fernandes

domingo, 26 de outubro de 2008

Não, você não é doce


Larga o meu braço. Isso, já.

Abandona as minhas pernas, deixe que dos meus pés seja o que eu quiser.

Estou pedindo para devolver o meu juízo, o meu querer e o meu dever que as horas ainda não disseram que repousariam sob mim.

E não me faz essa cara mendiga, não levanta as sobrancelhas desse jeito nem me lança esses braços elásticos, pois eu disse a todos que iria. E eu preciso ir ver o que há do lado de lá, saber das músicas que eles ouvem, das bobagens que eles contam e das indecências que ruminam. Não que isso mude o lado de cá, mas eu desejo tanto saber.

Quero mudar esta roupa, lavar e largar estes cabelos, guardar meus óculos, pintar os olhos, esquecer a dor e fazer qualquer um chorar de rir. Fazer o garçom trabalhar até mais tarde, até a comida esfriar enquanto a bebida esquenta e eu conto os meus contos cheios de fantasias de menina ao mala da cadeira ao lado.

Deixa, só por hoje, que eu beba até esquecer os sentidos e virar uma sinestesia viva. Que suba na mesa e cante Odair José em alto e desafinado som. Amanhã, com ajuda de qualquer sede e qualquer dor de cabeça, você me conta o que houve debaixo daquele teto. E eu juro, juro mesmo, que não me importarei. Quando o azedo assumir todos os gostos, todas as comidas, lembrarei-me da certeza de que não há sabor pior do que o do jejum.

O que não parece justo é entregar as minhas décadas a esse pote de amarguras que é você. Nem é certo deixar os íntimos virarem estranhos e os estranhos mais estranhos ainda, se a gente não nasceu pra ser dueto. Se o nosso par é brega e inútil. Se enquanto você me segura, tão firme e tão convincente, eu só sei esperar o dia em que você vai desistir de mim.

Você não é doce. Não do tipo que pode ser posta distante, para ser sentida apenas na ponta da língua, quando a fome faz salivar. Assim você seria uma delícia. Você é amarga e fica tão próxima à garganta que tão logo faz sufocar e doer.

Então sai depressa daqui, solidão.

Sai porque hoje eu não quero ver você nem vestida de chocolate.

Rafaela Fernandes

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Noites assim


Era uma noite comum, escura, de mais uma sexta que – diferente dos bons tempos em que se usava uniformes – não tinha nada de bela e atraente, não tinha gosto de folga nem esperança de alvoroço. Era uma sexta-feira naturalmente fracassada e tediosa e não havia nenhuma dor desconhecida proveniente disso.

Surgiu, porém (coloco um grande peso nesse porém, o equivalente ao de me tirar do sofá e fazer-me passar pelo chuveiro para pôr uma fantasia qualquer), a idéia de sair. Poderia ter sido um convite, mas foi uma idéia. Escolhi acompanhar alguns por qualquer lugar. Qualquer que me parecesse novo e onde eu pudesse não falar para dedicar-me com sincero prazer ao ouvir.

E Fui.

(Daqui em diante tudo parecerá uma crônica mentirosa, mas decido continuar assim mesmo)

Após pouco mais ou menos de duas horas sentindo frio do tipo que eriça pêlos - num ato de quase deboche ao calor que é tão nosso -, ouvindo a cadência paliativa de um trio de berimbais, temendo algum pé daqui ou outra mão dali e agradecendo à lua por está tão companheira, tão junto; após essa utopia de roda, quis mais. Quis naquele agora conhecer mais do pedaço da cidade que vive apesar da moda, do tempo ruim, da lei-seca e do último capítulo da novela das oito.

E, para dias em que se quer isso, existe aquele mosaico de paralelepípedos. Um lugar que, quando vazio, conta-se que parece qualquer um escuro, ameaçador, com alguns sobradinhos envelhecidos e um tanto manchados pelos dias, um ou mais albergues, uma loja de portões e menos de meia dúzia de bares apertados. Mas na hora em que tudo isso se recheia - e isso acontece com uma freqüência muito maior do que a estimada pelo lado A - eu deixo de saber contar o que é. Talvez seja uma despretensão capaz de criar uma juventude de meio século, recordar o que não tem idade para ter vivido e matar toda pendência em um copinho achatado, portador do líquido que é doce e ardente, tal qual a semana que se foi.

Desejei obedecer ao meu cansaço senil e deitar-me ali mesmo, sobre uma daquelas mesas molhadas pela chuva rala que não concordou em ficar fora da festa. Aposto que tudo seria vivido também de olhos fechados, pois duas pálpebras são sinceramente incapazes de separar o que foi do que se pensou que fora. Acordaria logo mais, quando as notas saíssem choramingadas da mesa ao lado. Viveria assim pelo resto dos meus dias e ninguém a quem eu contasse acreditaria que tudo isso se esconde ali, na esquina anterior.

São a noites assim que se dedica o resto de um mês. Que se vê sentido em desejar coisas boas quando a maré pede, usando berros ensurdecedores, para que você seja sociável, esteja satisfeita com refrões que repetem sete vezes a palavra chiclete ou que te convencem a chupar, uma vez que é de uva. “Seja menos descontente e jogue toda essa birra de um lado, menina!”. Não. Não sou, não vou, não vejo graça e sim, sou que nem a sua mãe.

Com a única diferença de que me sinto mais leve, bem mais leve do que ela, pois não tenho filhos.


Rafaela Fernandes

sábado, 4 de outubro de 2008

Sob duas antenas


Agora eu poderia ser uma formiga.

Agora eu poderia ser uma daquelas quase invisíveis. Miúdas, ágeis. Sim, aquelas de hábitos oportunistas, que ninguém julgaria como pecaminosos, e uma dieta generalista, que colesterol nenhum seria capaz de restringir.

Ficaria satisfeita, até ‘íssima’, em ser a fértil que venceu por matar ou repelir tantas outras e que, só por isso, é a rainha. Seria fecundada apenas – e qual o problema? - por um ou dois machos. Machos leais, não atiradores de galanteios despersonalizados.

Depois de fecundada, abandonaria em um lado as minha asas, tão voadas, e procuraria um abrigo para os primeiros ovos de uma comunidade de milhares. Reinaria sobre todos os meus adocicados semelhantes e não cultivaria rugas, riscos de vasos obstruídos nem mesmo qualquer gastrite insolente, já que a busca por alimentos, o cuidado da prole e toda organização da colônia não caberiam a mim, mas às minhas solícitas operárias. E, nem duvide, essas trabalhariam não pelo troco do fim do mês, mas meramente em nome da nossa ordem e do nosso juízo.

Ah, e eu não seria insana em escolher como cenário algo dessemelhante a uma casa com bom gosto musical e adepta de hábitos alimentares refinados. Os melhores vinhos e uísques, as melhores e mais açucaradas tortas e algumas empadas, pizzas e afins para não deixar a vida enjoada demais.

Calada, seria capaz de fazer todos os demais me entenderem e nada sucumbiria antes de a mesa ser limpa, a comida ser posta e a festa ser declarada. O veneno, a destruição do ninho e o tão temido – e previsível - fim viriam depois de uma vida tão bem tida, que pouca diferença faria. Logo mais outra alada, outra rainha, começaria tudo novamente como se nada houvesse nos ferido antes. E outra vez e outra vez.

Rafaela Fernandes

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Da mudança do medo...ou do medo da mudança?

Toda quarta-feira, ela vestia sua melhor roupa. O seu melhor vestido escoltava sua silhueta delicadamente desenhada, valorizando sua forma instrumental de violão e esvoaçando-se ritmicamente com o andar daquela moça, como a perfeita combinação de uma melodia com sua letra. Sua sombra escura contornava seus olhos grandes e brilhantes, fazendo sintonia com o azul profundo do seu olhar. Abria o armário e calçava seus melhores sapatos. Eram altos e desvendavam o segredo dos seus pés praticamente nus.

Desligava as luzes de casa e sempre deixava a janela aberta, para o luar iluminar seu quarto escuro. Andava desacompanhada na noite fria, tanto de braços de lã ou de humanos. Como sempre.

Entrava no bar e sentava-se na mesma mesa de toda quarta-feira. A mesa do canto, da qual se tinha a visão completa do ambiente e a escondia na sombra, pela falta de luz. Apenas ela e o luar brincalhão que conseguia escapar por entre a vidraça, de vez em quando. Pedia a mesma bebida: vodka com gelo. E esperava.

Na mesma hora, toda quarta-feira, ela o observava entrar, sentar-se na mesa do outro lado do recinto e ordenar o seu passa-sede habitual: cerveja. O cansaço expresso sem vergonha em seu rosto combinava com suas calças largadas e surradas, daquelas que já tinham “muitos anos de prática no negócio”. Sua camisa de botão mal passada já havia sofrido o desabotoar dos dois primeiros proprietários e estava aos gritos com seu par de tênis, o qual, é válido salientar, já havia alcançado a meia-idade.

Ela notava, de longe, o afogamento precoce daquele homem no copo que transbordava a frieza que o esquentava, afundando-se na sua própria desventura. Acompanhado de homens assim como o qual, ele acendia o seu cigarro e bebia sua água. Toda quarta-feira.

E toda quarta-feira, após terminar sua única dose, ela se levantava, recolhia sua cadeira, deixava uma gorjeta para o garçom e andava com seus melhores sapatos até a porta, de onde jogava um último olhar, com seus olhos grandes e brilhantes, para aquele homem.

E mais uma vez, toda quarta-feira, saía com sua certeza: de que seu melhor vestido e seu melhor par de sapatos não seriam capazes de cortar as raízes grossas e fortes daquela pequena metáfora de árvore humana.

A despeito de todos os problemas dele, ela comportava uma falha muito maior: tinha medo de mudar a roupa.

Beatriz Noele

domingo, 7 de setembro de 2008

Entre uma vida e outra


Sem mais, ele entregou-lhe o roteiro da próxima temporada. Descobrira ela, aí, que dentro daquele agressivo punhado de papéis havia uma nova personagem, cenários inusitados e coadjuvantes esquisitíssimos. “Mas tudo bem”, disse ela, conformando-se. Ela sempre dera conta e não seria esta vez uma exceção. Não esta e não agora que ela precisava tanto. Um tanto que era capaz de deixar a sua rotina oca. “Vai ficar tudo bem”, repetia ela na solidão daquela trilha comprida, deixando que a mentira ecoasse até soar tal qual uma verdade.

Juntou seus três ou quatro trapos, encolheu-os em uma mochila, pôs os cabelos em uma liga esgarçada e seguiu cheia daquele seu ar mafaldiano. A partir de agora todo seu repertório deveria ser escondido em qualquer gaveta do seu armário embutido e ela seria apenas aquilo que constava nos tais papéis.

Tomaria três banhos por dia, lavaria os cabelos dia-sim-dia-não, usaria anti-séptico bucal, trocaria as escovas de dente a cada três meses, dormiria por oito horas das suas 24, leria dois livros rechonchudos por semestre, diria um amistoso bom-dia ao porteiro metido e não desperdiçaria seu precioso tempo com parangolés.

Na segunda-feira acordaria esbanjando disposição. Trabalharia sem poréns e peraís. E, após um almoço verde temperado pela brisa carinhosa que invadia sua janela cheirando a mar, retomaria sua vontade e concluiria um segundo expediente regando-o com aquele fiel bom humor. Ao sair, driblaria o trânsito com as duas rodas da sua bicicleta e chegaria à academia a tempo de fazer a sua série completa. Na hora prometida estaria na devida casa para um disciplinado jantar, algumas horas com os livros e tantas outras com a cama. Nela teria um sono justo, profundo e incorruptível. Talvez sonhasse, talvez nem lembrasse. Restava pouco tempo para essas coisas abstratas. Você sabe como é.

Nas horas restantes desejaria só os homens corretos, freqüentaria só os melhores bares, serviria de companhia apenas para os de boa família e nunca perderia o controle entre uns goles e tal. Conversaria sobre atualidades, artes e ciências exatas. Mas não faria nada, que não assentir timidamente, quando o assunto remasse ao desconhecido.

Não escapavam, assim, horas para lamúrias, dilemas e crises. O linear de sua vida recusava-se a parar para rever, reponderar, reviver e qualquer outra ré. Não sabia se já havia sido ferida, tampouco se já havia sido amada. Sequer se doía por ser só, já que nunca soubera o que era ser par. Desmembrava o papel de ser enxugando os intervalos do pensar e do querer. Era assim porque alguém quis e não haveria de ser o avesso.

Um dia, enfim, deitaria enrolada, pequena e albina. Dormiria feliz para não acordar mais.

Rafaela Fernandes

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Um anonimato à parte

“Oi, boa tarde.”
“Boa tarde. Como iniciante neste grupo, gostaríamos que falasse um pouco sobre você.”
Tomara tal iniciativa naquela mesma manhã. E não foi nada fácil. Seria uma mudança drástica no seu dia-a-dia celestial. A rotina que lhe perseguia constantemente abriu aqueles olhos graúdos, já cansados de esbanjar seu brilho. Este já se encontrava ofuscado e perdido.
Ela acordava todas as manhãs para cantar a mesma trilha sonora de todos os dias. Seus cabelos amanheciam em nós, os quais desmanchavam seus muitos cachos que disputavam furtivamente por um olhar à claridade da manhã.
Bebia uma xícara de café, enquanto folheava as páginas do jornal, sem se abalar com nenhuma manchete. Importar-se com o supérfluo já tinha sido um sintoma que lhe pertencera, antes de ser exaurido junto da estimação a si mesma.
“Não sei se consigo.”
“Tudo bem. Então vamos iniciar de outra forma. Que tal-”
“Já faz quase dez anos.”
O susto foi inevitável.
“Que o mantém?
“É.”
“E como você se sente?”
“Não sei descrever.”
“Mas, você quer largá-lo?”
“Vim aqui tentar descobrir isso.”
Às vezes, sofrer leva o ser humano a cometer devaneios e adquirir hábitos equivocados. As decorrências de uma vida levaram uma existência a tomar atitudes ímpares. E ela sabia que a lambuja inicial seria o primeiro passo para o seu qüiproquó. Foi de propósito. Esse vício frio lhe conferiria proteção. E seria com este pensamento certeiro – e, mais tarde, impreciso – que, por muitos anos, ela caminharia de mãos dadas, cotidianamente.
“Teve-se início nos meus dezoito anos.”
Os aferros já são por si insistentes. Os aferros de uma adolescente são insistentes, amargurados, carentes de eufemismo. São trazidos consigo por uma eternidade, até o mais íntimo da dor, da quebra da estima, da tomada da esperança.
Ela chegara em casa e três coisas a esperavam: um par de meias deslembrado, um bilhete despojado e algumas muitas lágrimas. Três vezes consecutivas. E pela terceira vez, a culpa não estava nela. Decidiu, portanto, arrancar de si um passado incoerente e lastimoso em troca de um futuro de uma coisa só. Ou, diria, de um nada que lhe havia sobrado.
Ela levaria quase dez anos para tentar começar a entender. E traria consigo as mãos confortáveis de um amigo que, ao apertar as suas, causar-lhe-ia uma dormência que a faria resistir. E esquecer.
Ela não gostava de se expressar; quão difícil foi estar ali.
“Me doía muito. Eu precisava de algo para me apoiar. Não podia deixar que se repetisse.”
Deu certo. Não se repetiu por infindos e quase completos dez anos. Ela não deixou. A partir de então, a única coisa que lhe incomodava era sua enxaqueca geneticamente adquirida e intensificada pela demasiada preocupação em exercer seu papel de figurante cinematográfico, passando despercebida ao olhar curioso e prestativo do espectador. Ela abandonou todos os seus vestígios amistosos e sociais, inclusive as lágrimas. Nada a comovia.
“E afogava-se ao chegar em casa?”
“Este vício me ajudou muito, quando eu enfraquecia.”
“E agora, você não consegue mais voltar a antes.”
“Temo que não. Já faz tanto tempo.”
E decorreu-se muito tempo. O vício lhe acompanhara desde aquela relevante decisão em afundar-se no mais profundo de sua alma remanescente, em enxergar a superfície com aquele olhar vago, e não buscar um aliviante punhado de ar. E nem deixar que uma mão samaritana trouxesse-a de volta à tona.
“E agora?”
“Eu nunca reparei que isso me esgotava tanto.”
“Você pretende parar?”
“Vim aqui tentar descobrir isso.”
“Já foi um grande passo você ter nos procurado. Para quem passou anos sem buscar ninguém, a não ser o vício”
“Esse vício corrompe mais do que qualquer ser humano imagina. Muito mais.”
Fez-se o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que está prestes a gritar alguma coisa surpreendente e assustadora. Aqueles olhos cansados e sem brilho procuravam eloqüentemente a luz para voltar a viver. E após pouco menos de dez anos, uma lágrima amiga os deixou.
“Saiba que todos estamos dispostos a ajudar no que for preciso.”
“Muito obrigada.”
Ela desvendou aquele rosto meigo e desamparado que havia passado a elucidação inteira disfarçado por trás do microfone.
“Hoje é o dia em que inicio a minha jornada rumo ao abandono do vício solidão.”
A primeira lágrima emocionada encontrou o canto de sua boca, que evidenciava um leve sorriso de libertação.
“Completaria dez anos...”
Uma segunda lágrima desesperada atingiu o canto oposto da sua boca.
“...que não consigo amar.”
O recomeço.
“Boa tarde.”

Beatriz Noele

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Um envelhecimento precoce demais


Cheguei quando ela já dominava as quatro longas paredes daquela sala de espera. Fazia isso com total maestria. Usava flores em um vestido comprido, que esperançosamente buscava aqueles pés tão resumidos a quase nada. Os cabelos haviam sido divididos entre dois miúdos cachos. Vestia seu rosto com óculos que faziam os seus olhinhos parecerem enormes bolas de gude. Contudo nada a caracterizava mais do que aquela alegria tão desinibida, tão histérica e tão ávida pelos olhos e ouvidos daquela platéia anônima. O espetáculo, sem convite e sem preço, desenrolava-se entre esboços de canções autorais. As palavras compreensíveis, entre tantas inexplicáveis, pareciam formar algo como “... precisa se casar...”. Por um instante desconfiei que o Tom e a Luz dos olhos teus estavam ali também, mas a discrepância entre gerações e, sobretudo, entre o tom – agora minúsculo mesmo – original e o apresentado, eliminavam tal suposição.

Posteriormente, abandonava as métricas para convencer sua mãe – já tímida e escondida sob a clássica justificativa “- Ela só que chamar atenção”- de que aqueles pequenos pés faziam-na mais bonita quando descalçados. A fisionomia que compunha esse propósito parecia falar que presos daquele jeito os dedos sofriam demais. Que não era justo, não mesmo, que se mantivesse cativo o que, invariavelmente, permaneceria por perto quando livre. A sua progenitora não só não compreendeu como sussurrou ordens de educação e obediência nas orelhas que pareciam servir apenas para sustentar as duas pernas de seus óculos graúdos.

Não havia razões para abalar-se, provavelmente pensou ela. Abraçou, então, seu “vovozinho”, que sempre estivera ali, logo ao lado, para que ele escutasse mais uma vez o quanto ela o amava, e seguiu com o seu show. Mais algumas canções inéditas, alguns efeitos sonoplásticos e breves contatos com a platéia já não tão atenta. O cansaço ainda nem ameaçava abatê-la quando foi tomada pela incontida vontade materna de ir ao banheiro. Pediu licença e acompanhou sua mãe, construindo uma inversão no mínimo intrigante.

O silêncio de então era profundo, frágil. Nem do espaço 2x2 onde se encontrava vinha qualquer espécie de ruído. E, antes que aquilo começasse a ficar esquisito, ela veio, trazendo a esperança de performances adicionais. Mas não foi bem isso que se viu. Com ela trouxe apenas sua face empalidecida e algumas rugas anacrônicas. Sentou-se e permaneceu muda, sem qualquer explicação. Sua mãe sentou-se muito ao lado, pacata e sóbria. Os espectadores se entreolhavam em busca de coerência, mas aquilo parecia inevitável.

Entre tantas dúvidas – que sonhos foram podados, quais talentos foram reprimidos, quantos traumas foram criados e/ou por que daquele jeito – todas ficaram e corroeram os figurantes presentes. O desejo de recuperar aquela alegria inexperiente, que se dizia assim por sequer conhecer todas as faces opostas a esse sentimento, era unânime, mas também infrutífero. Nada renaturaria. Era essa a certeza de todas as expressões calejadas por diversas e infalíveis amarguras de uma vida com pelo menos dois dígitos. Nada renaturaria e a versão posterior seria sempre mais doída e menos ousada.

Custava ter esperado ela ouvir as palmas da platéia?

Rafaela Fernandes

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Falando nisso...


Há algum tempo, escrevi Ócios do Ofício, versão 1. Achei válido trazer a versão 2 à tona, mudando só os coadjuvantes. Antes, eram o tédio e o ócio que conversavam. Agora, após um longo período em parceria com esses dois pés-no-saco, três grandes amigos dialogam: a amizade, a cumplicidade e a compreensão.
Escrever sempre me foi um ato muito libertador, diria até aliviante. Mas, Ócios do Ofício 1 não conseguiria tal sucesso sozinho. Quis dar a ele uns estímulos a mais: a tal amizade, cumplicidade e compreensão que este ofício e minhas palavras merecem, aguilhões esses que se resumem em um alguém só.
Que nossas birras continuem sendo geniosas, caprichadas e eternas, como - para um bom entendedor de birra em compota - uma polinização de abelha em flor.

Beatriz Noele


Quando convidada, cheia de birra eu despejei algumas condições:
Ele tem que ser arrebatador, tipo beijo roubado; consolador, como aperto estreito; e, quem sabe, inspirador e cheio de uma falsa audácia juvenil notória desde já. Notou?
Quero-o como minha descarga. Pois, mesmo sabendo que a desordem sempre aumenta - que é irrefutável, inevitável -, pelo menos toda a tralha interna sai de perto, deixa de exalar enjôos. Pelo menos ela deixa de perturbar, se perde por aí. Até uma altura em que pouco importará quem a verá e o que dirão dela. Reagirei como se ela não fosse mais minha. E, afinal, nem é exatamente. Quando posta no mundo, ela é do mundo. Tal qual tudo mais nesse universo sem dono, sem dó.
Prefiro não ser incomodada quanto à tônica melodramática e/ou conformada das palavras de depois. Compreendendo isso como um vício, alimentado há quase duas décadas por uma mente em forma de lupa, as coisas parecerão coesas. Como se gostam que elas sejam.
Contudo eu preciso de alguém que ache que tudo isso cabe em uma crença. Que torne toda essa pirraça um tanto doce, paliativa e, por que não, apetitosa. Sozinha, eu aproveitarei a oportunidade apenas para mais uma lição do apanhado “como fazer algo não perdurar”, e fracassaria em escassas palavras de abandono. Melhor nem arriscar.
Pode ser? É assim que será?
Fechado, então.

Rafaela Fernandes