terça-feira, 3 de março de 2009

Amém

Toc , toc, toc.
Ela estava sentada em seu gabinete, revisando os obituários daquele dia. Enquanto passava delicadamente seu dedo indicador para passar as páginas, suas unhas vermelhas – feitas no pequeno horário vago entre um atentado e um homicídio – cintilavam contra o papel meio acinzentado.

Toc, toc, toc.
Ela girou na cadeira, impaciente. Largou os papéis em cima da mesa e andou elegantemente até a porta. Seu andar era atraente, como uma modelo esculpida à mão caminhando graciosamente numa passarela coberta de pétalas, com uma platéia em lágrimas surgidas pela dor causada por sua beleza magnífica. Seu salto alto fazia um som que resplandecia autoridade, quando ia de encontro com o chão de madeira.
Abriu a porta devagar, inaugurando em seu rosto ausente de imperfeição um olha reprovador.

“O que foi dessa vez?”
“Desculpe, senhora, é urgente.”

Ela revirou os olhos e bufou por um instante. Recuperou sua postura e protestou: “Eu te disse que não gostaria de ser perturbada hoje. Tenho muito trabalho. É muita coisa para uma pessoa só fazer! Ah, faça-me um favor, sim? Ligue para a companhia de viagens e diga que precisarei adiar as passagens. Não posso mais tirar férias.”
O seu assistente olhou-a com certa relutância. Reparando na mudança, observou a senhora em sua frente com um aspecto diferente do medo que sempre sentia ao tentar admirá-la.

“Que é que você tá olhando aí?”, ela bradou de imediato.
“Ehr...é que a senhora mudou seus trajes. O manto escuro que cobria suas curvas, as botas pretas de salto alto que chegavam até o seu joelho.”

Ela rodopiou alegremente, avaliando a si mesma com pretensão. Agora, ela usava uma saia apertada, a qual contornava a forma espetacular do seu quadril vasto, chegando até os seus joelhos. A blusa de manga três - quartos deixava à mostra seu colo, afinando o interesse de se ver por debaixo das golas. Seu cabelo claro estava preso a um rabo no alto da cabeça e seu rosto de anjo iluminava o ambiente esplendorosamente. Sim, ela havia atingido seu objetivo. “Gostou? Eu falei com o meu Chefe e Ele deixou que eu me vestisse da forma que quisesse. Acho que fica menos difícil para os clientes me receberem, não?
“Sim, claro, senhora.”

Seu criado ficou ali absorto em pensamentos, ainda olhando admirado para sua alteza. Ela o encarou de forma reprovadora e estalou os dedos na frente de seu rosto. Com um salto, o pequeno homem voltou à realidade, com certo temor pela sua vida. Ela cruzou os braços ao peito e bateu o pé direito seqüencialmente no chão, esperando.

“Oh, perdão. Então, acharam a garotinha.”
“Que garotinha?”
“Aquela menininha chamada Esperança.”

A mulher esbelta e graciosa girou em seu calcanhar e andou pelo seu escritório. Seu assistente a seguiu, enquanto ela se sentava e transbordava alívio em suas feições.
“Ainda bem. Menos trabalho para mim. E a mãe dela?”
O criado hesitou a sua pergunta, levando um momento para respondê-la. Tomou cuidado suficiente ao se afastar de sua chefe antes de lançar-lhe a maldita réplica.
“Ehr...acharam o corpo dela na Av. Atlântica. Ela foi morta por uns ladrões que tentavam roubar o conteúdo de sua bolsa.”

A senhora abriu sua boca perfeitamente desenhada, corando seu rosto e transparecendo fúria tremenda. Fechou sua mão em punho e com a maior força que tinha, atirou-a na mesa, mexendo toda a papelaria e tremendo os objetos que estavam ali em cima.
“O QUÊ? Como ALGUÉM matou aquela velha sem o MEU consentimento? Isso é praticamente impossível!”
“Acho que é por isso que ligaram para cá. Para a senhora ir buscar a alma dela.”
“DE JEITO ALGUM! Essa mulher não pode morrer! Eu vou trabalhar para sempre?! Vá lá fora já e me ponha em contato com os céus, imediatamente!”

O assistente nervoso saiu da sala correndo, fechando a porta ao passar. A elegante moça andou de um lado para outro em seu escritório e correu para atender ao telefone ao tocar. Ela hesitou por um momento.
“A benção, Senhor.”
Uma voz masculina, grossa, encantadora e calma respondeu do outro lado.
“Deus te abençoe. Quer dizer, Eu te abençoe.”
“Senhor, meu assistente acaba de me informar que Maria dos Remédios passou desta para melhor.”
“É verdade, ela estava aqui comigo agora mesmo tomando um chá.”
“Mas e agora? Senhor, o trabalho vai triplicar. A saúde pública é muito precária, a sociedade está de cabeça para baixo, serão milhões de assassinatos, suicídios, mortes! Como eu vou dar conta disso tudo sozinha?”
“Não te preocupes, dona Morte. Eu recebi uma ligação da maternidade dizendo que a Cura acabou de nascer. A pobre mulher já estava muito velhinha, coitada. Precisava descansar também. Ai ela ligou para mim, conversei com ela e ficou decidido isso.”
“E por que ela não morreu de morte natural? Por que assaltaram a pobre?”
“Ah, ela falou que queria que alguém fizesse algum uso dos seus antídotos.”
“Mas um ladrão?”

O Senhor riu com a pergunta da bonita moça, antes de respondê-la.
“Foram pessoas contratadas por mim. Ela me disse que gostaria de ser lembrada de alguma forma. Então, se a senhora ligar a tevê agora, assistirá a sua ‘tragédia’ no noticiário nacional. Mulheres. Sempre querendo chamar atenção” – riu o Senhor por entre as últimas palavras profanadas. Ele esperou pacientemente por um comentário da dona Morte.
“Eu achei que o Senhor podia cuidar da cura dos humanos sozinho.”
“Ah, Dona Morte. E quanto ao meu descanso? Preciso repousar também! Eu já sou a Fé, a Salvação, o Refúgio de tanta gente. Bom, creio que a senhora está mais aliviada agora. Por obséquio, busque a alma da nossa querida Maria dos Remédios para que ela possa entrar de fato no reino dos -” O Senhor calou-se e tudo que se pode ouvir foram vozes do outro lado da linha.

A Morte se assustou e perguntou desesperada ao telefone: “Aconteceu alguma coisa por ai, Senhor?”
“Ah, não muito. É que eu tava de saída pro cinema com o Jesus e me atrasei.” Ele se virou e falou com o filho por um breve momento e depois retornou à ligação. “Oh, dona Morte, me desculpe, que má educação a minha! Quer ir ver um filminho?”

Beatriz Noele