domingo, 16 de agosto de 2009

Flores para Dr. Francisco

Primeira dia de aula incomum:

As características físicas e psicológicas variam de indivíduo para indivíduo e, dentre elas, a inteligência humana pode ser inclusa como uma propriedade que também não é constante na população. Tal atributo é mensurado através de testes que indicam o quociente de inteligência (Q.I.), termo criado pelo psicólogo francês Alfred Binet. Assim, é possível encontrar diferentes valores para o Q.I., assim como é natural o desejo de se trabalhar com as pessoas consideradas portadoras de inteligência acima do normal (Q.I. superior a 115).

Entretanto, diversos cientistas e estudiosos do assunto concordam que o Q.I. é apenas uma parte de um conjunto de habilidades que podem ser encontradas em um indivíduo, como linguagem e memória. Tais habilidades são susceptíveis a mudanças e, portanto, não se pode concluir que o Q.I. é uma característica imutável, idéia essa transmitida pelo artigo.

Além disso, o Q.I. não abrange outras características de inteligência, como a criatividade e as habilidades artísticas. Muitas pessoas pertencentes aos 95% (aqueles que possuem um Q.I. inferior a 115) têm outros dons, como pintar, cantar, ou tocar um instrumento, e podem com certeza ter grande sucesso, apesar de seu quociente de inteligência não ser superior a 115. Possivelmente, o Q.I. esteja relacionado ao sucesso em muitas atividades acadêmicas, mas ter um Q.I. elevado não é necessariamente a única esperança de se ter sucesso na vida.

Pode-se exemplificar tal argumento com a história do livro “Flores para Algernon”, de Daniel Keyes, que conta a história do personagem Charlie Gordon (Q.I. de 68), o qual passou por uma cirurgia (antes testada em um rato de laboratório chamado Algernon) para atingir um estado de superinteligência. Porém, seu aperfeiçoamento mental era apenas provisório e sua inteligência foi se desvanecendo ao longo do tempo. Mas essa experiência também ajudou o personagem a aprimorar suas habilidades emocionais e sociais e, assim, no final do livro, ele volta a ser um homem de Q.I. baixo, só que com grande conhecimento no campo psicológico, na administração de sentimentos e emoções. Ele deixa de ser solitário e infeliz e passa a ser uma pessoa feliz.

Com certeza, Charlie Gordon é um exemplo para comprovar que ninguém pode ser taxado de medíocre por possuir um Q.I. inferior a 115. Muita gente pode ter um brilhantismo excepcional, mas ser incapaz de controlar sensações como raiva e impaciência, assim como de respeitar os sentimentos e pensamentos do outro, e até mesmo não ser capaz de admitir um único erro cometido por si próprio. Além disso, é estudada a correlação de que pessoas com um Q.I. mais alto têm, em média, indicadores socioeconômicos maiores, possibilitando um acesso melhor à saúde e informação. Desta forma, indivíduos que chegam ao ensino superior não tiveram igual qualidade de ensino nos níveis médio e fundamental, mas com esforço e força de vontade, eles podem atingir sucesso acadêmico assim como aqueles contidos nos 5%.

No meu ponto de vista, ninguém é medíocre ou passa pela vida sem deixar nada de útil. Estudar é um dom, assim como pintar, escrever e ensinar. Ser inteligente é uma qualidade que abrange muitas subdivisões e que não pode ser medida apenas considerando o número do Q.I. Tendo ou não Q.I. maior que 115, fomos capazes de chegar até aqui, de estudar na melhor universidade do Nordeste e de participar de um curso muito renomado e difícil como Medicina. Com certeza, deixaremos nossa marca nesse curso, deixaremos lembranças e feitis úteis para os que já estão dentro desse mundo e para aqueles que lutam para entrar nele. O importante é querer, esforçar-se e, acima de tudo, ser feliz.

Beatriz Noele

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Não se trata de um mero barro oco


Ele acorda trepidante. Parecia-lhe que a hora, que na verdade ainda nem chegara, já havia passado do ponto há muito. Ignora a constatação que vem em seguida, da sua janela. A de que o céu ainda não faz sol e de que os passarinhos ainda roncam, em vez de cantar. O universo conspira a favor do sossego da sua cama, mas o menino resiste, quer começar cedo. Já acordou e já sorriu para o quase-dia, dando sinal de que aquele despertar não tinha mais volta.

Ainda com os olhos amiudados pelo sono, lava o rosto marcado pelos sonhos da última noite, prepara as mãos calejadas pela sobrevivência e lança-as à obra. Barro bruto, com jeito de coisa alguma. Frio, como se assim declarasse sua carência de alma capaz de fazer um calor qualquer. E o menino, agora já assumindo jeito de homem, põe em mãos a responsabilidade pela imprevisível criação.

Molha aqui, modela assim. Remove dali, acrescenta onde der. Há algum racionalismo sim, mas a emoção revela-se majoritária em cada singelo toque. As mãos cuidadosas – e um tanto trêmulas pelo binômio desejo-medo - dão ao barro moço curvas cheias de boas vontades. Das mãos criadas partem braços frágeis e daí um corpo inteiro, cujo desenho tem o formato das mãos de onde tudo partiu. Não duvide da impressão, trata-se mesmo de um ciclo imbuído de vício. Tudo começa onde tudo termina para começar de novo.

Antes que alguém questione, o moço reforça: esta obra não nasceu por um fim e vai viver da beleza da repetição. E a obra, que acaba de ganhar um coração (ou de redescobrir o seu, pouco importa), garante que, agora, o que mais sabe desejar é permanecer nas mãos desse que a criou. Não por mera gratidão, mas por sincero querer. Quem te disse que barro não ama?

Rafaela Fernandes

sábado, 13 de junho de 2009

De primeira viagem

Calma, calma! Não precisa desse alvoroço. Você também é de primeira viagem? Então, entende do que estou falando. A animação é muita, mas, junto dela, também caminha a aflição, como duas irmãs siamesas. Uma deu um passo, a outra deu junto.

Aí você sái de casa, anda a cidade inteira e não encontra nada. Sabe quando você já pensa no que quer antes mesmo de saber se está à venda? E quem disse que existe? E quem disse que vai ter exatamente como você imaginou? Bordas pretas, quatro espaços, dois em pé e dois deitados.

De repente, você encontra, ufa! E resolve dar uma realmente de “primeira viagem” e fazer todo o resto. O coração que é bom e custa uma nota preta foi deixado um pouco de lado. Levou-lhe horas para ficar pronto, mas ficou do seu agrado. Deu até vontade de comer os bombons.

Mas agora que passou e a calmaria reina por completo, não me arrependo do tempo que correu rapidamente pelos meus olhos enquanto eu o preparava carinhosamente. E espero que tenha acontecido o mesmo com você.

Surpresa!

A recíproca foi muito verdadeira. As flores eram lindas, e ouvir o que mais se espera também foi maravilhoso, quiçá o mais perfeito dos presentes. Tem coisa melhor do que ser de primeira viagem? Posso até garantir que agora eu espero ansiosamente para o embarque da próxima aventura.

E entre lágrimas e sorrisos de felicidade, eu virei para ele e disse “eu também te amo!”

Beatriz Noele

sábado, 16 de maio de 2009

Enfim, livre


Ah, liberdade! Se for você mesmo quem bate palmas aí fora, pode entrar. Entra que a casa te espera há tanto tempo que quase esqueceu que era possível que você viesse.

No começo os daqui tinham se acostumado com a idéia de viverem presos ao desejo de sua chegada. Sim, isso é possível. Desejar você prende a gente. Com medo que você quisesse entrar e ninguém estivesse aqui para te abrir a porta ou que você ligasse e não houvesse um par de ouvidos para te atender, a gente foi se escravizando por vontade. E foi achando isso normal e foi acreditando que isso era ser feliz.

Mas se não é você aí fora, liberdade, eu já acho que não faz diferença. No fim, esperar por você fez também esta gente daqui sonhar, tomada pelo cansaço da expectativa. E de tanto sonhar o mesmo sonho fez-se dele algo para os olhos abertos, algo colorido e até com três dimensões. Criamos a nossa própria liberdade, acredita?

A gente acreditou e conheceu, sem precisar marcar encontro, preparar a mesa ou convidar a entrar, algo que pediu para ser chamado de felicidade.

Rafaela Fernandes

terça-feira, 7 de abril de 2009

Isto é outra coisa


Porque isso é outra coisa. Isso que você fala.

O que eu falo não tem o gosto acre da ressaca para esquecer, porque o que eu falo não foi feito para esquecer. Foi feito para acordar e lembrar, almoçar e lembrar, chegar de um dia cinzento e lembrar, deitar e, antes de adormecer, lembrar. O que eu falo não foi feito para esquecer, assim, entre todas as outras coisas. Foi feito para lembrar.

Não, o que eu falo também não faz chorar. Não de tristeza. O que eu falo é para sorrir. Sorrir apesar da praia com chuva, do calor que derrete até a paciência, do trânsito que não vai te deixar chegar na hora, do trabalho que não vai ficar pronto a tempo. O pai reclama, a mãe resmunga o seu mau humor, a irmã chora seus mimos, batem a porta na sua fuça e você desenha um sincero sorriso no rosto. Deixa que a lágrima escorra sim, mas que o faça entre os dentes, em meio de uma feliz parábola de lábios. Assumindo, a cena, um tom que provoca os olhos ranzinzas. Que provoque! O que eu falo só quer sorrir.

O que eu falo não tem essa sua insegurança. Esse seu medo do depois. O que eu falo é abraço. Seguro, firme e fechado. Quatro braços, um abrigo. Ufa! O que eu falo não tem brechas para as picuinhas do mundo, não. Se falou que vinha, é porque vem. Se disse que ligaria, vai ligar. Não ligou ainda porque adormeceu, porque a aula atrasou, o celular descarregou... Mas espere, vai ligar. E você vai acreditar quando te disser o que aconteceu antes de conseguir falar com você. Mesmo quando existirem histórias épicas no meio do enredo, você vai acreditar. Por que não acreditaria?

Mas você não precisa vir dar um nome ao que eu falo. O que eu falo não nasceu feito criança boba, esgoelando-se por um sentido para ter vindo ao mundo. Nasceu porque não tinha outra escolha que não nascer. E já. Como se o simples existir já explicasse o próprio existir. Ouso pedir ainda que esqueça um pouco essa da morte nos separar, de ele ficar com a parede e eu com a porta, de ele roncar demais, de eu precisar de um anel nosso ou de a gente precisar explicar alguma coisa a alguém. Isso fica para as coisas que constam nos dicionários, que passam por reformas ortográficas. O que eu falo não. Porque o que eu falo não tem nome e não tem porque não precisa.

O que eu falo vive do agora. Do gosto que fica. Que pode ser que dure para sempre, como gostam de prometer por aí, mas também pode ser que não. O que não pode mesmo é você achar que isto é igual a isso que você conta. Não, não. Isto é outra coisa.

E faz um bem que você nem imagina.

Rafaela Fernandes

terça-feira, 3 de março de 2009

Amém

Toc , toc, toc.
Ela estava sentada em seu gabinete, revisando os obituários daquele dia. Enquanto passava delicadamente seu dedo indicador para passar as páginas, suas unhas vermelhas – feitas no pequeno horário vago entre um atentado e um homicídio – cintilavam contra o papel meio acinzentado.

Toc, toc, toc.
Ela girou na cadeira, impaciente. Largou os papéis em cima da mesa e andou elegantemente até a porta. Seu andar era atraente, como uma modelo esculpida à mão caminhando graciosamente numa passarela coberta de pétalas, com uma platéia em lágrimas surgidas pela dor causada por sua beleza magnífica. Seu salto alto fazia um som que resplandecia autoridade, quando ia de encontro com o chão de madeira.
Abriu a porta devagar, inaugurando em seu rosto ausente de imperfeição um olha reprovador.

“O que foi dessa vez?”
“Desculpe, senhora, é urgente.”

Ela revirou os olhos e bufou por um instante. Recuperou sua postura e protestou: “Eu te disse que não gostaria de ser perturbada hoje. Tenho muito trabalho. É muita coisa para uma pessoa só fazer! Ah, faça-me um favor, sim? Ligue para a companhia de viagens e diga que precisarei adiar as passagens. Não posso mais tirar férias.”
O seu assistente olhou-a com certa relutância. Reparando na mudança, observou a senhora em sua frente com um aspecto diferente do medo que sempre sentia ao tentar admirá-la.

“Que é que você tá olhando aí?”, ela bradou de imediato.
“Ehr...é que a senhora mudou seus trajes. O manto escuro que cobria suas curvas, as botas pretas de salto alto que chegavam até o seu joelho.”

Ela rodopiou alegremente, avaliando a si mesma com pretensão. Agora, ela usava uma saia apertada, a qual contornava a forma espetacular do seu quadril vasto, chegando até os seus joelhos. A blusa de manga três - quartos deixava à mostra seu colo, afinando o interesse de se ver por debaixo das golas. Seu cabelo claro estava preso a um rabo no alto da cabeça e seu rosto de anjo iluminava o ambiente esplendorosamente. Sim, ela havia atingido seu objetivo. “Gostou? Eu falei com o meu Chefe e Ele deixou que eu me vestisse da forma que quisesse. Acho que fica menos difícil para os clientes me receberem, não?
“Sim, claro, senhora.”

Seu criado ficou ali absorto em pensamentos, ainda olhando admirado para sua alteza. Ela o encarou de forma reprovadora e estalou os dedos na frente de seu rosto. Com um salto, o pequeno homem voltou à realidade, com certo temor pela sua vida. Ela cruzou os braços ao peito e bateu o pé direito seqüencialmente no chão, esperando.

“Oh, perdão. Então, acharam a garotinha.”
“Que garotinha?”
“Aquela menininha chamada Esperança.”

A mulher esbelta e graciosa girou em seu calcanhar e andou pelo seu escritório. Seu assistente a seguiu, enquanto ela se sentava e transbordava alívio em suas feições.
“Ainda bem. Menos trabalho para mim. E a mãe dela?”
O criado hesitou a sua pergunta, levando um momento para respondê-la. Tomou cuidado suficiente ao se afastar de sua chefe antes de lançar-lhe a maldita réplica.
“Ehr...acharam o corpo dela na Av. Atlântica. Ela foi morta por uns ladrões que tentavam roubar o conteúdo de sua bolsa.”

A senhora abriu sua boca perfeitamente desenhada, corando seu rosto e transparecendo fúria tremenda. Fechou sua mão em punho e com a maior força que tinha, atirou-a na mesa, mexendo toda a papelaria e tremendo os objetos que estavam ali em cima.
“O QUÊ? Como ALGUÉM matou aquela velha sem o MEU consentimento? Isso é praticamente impossível!”
“Acho que é por isso que ligaram para cá. Para a senhora ir buscar a alma dela.”
“DE JEITO ALGUM! Essa mulher não pode morrer! Eu vou trabalhar para sempre?! Vá lá fora já e me ponha em contato com os céus, imediatamente!”

O assistente nervoso saiu da sala correndo, fechando a porta ao passar. A elegante moça andou de um lado para outro em seu escritório e correu para atender ao telefone ao tocar. Ela hesitou por um momento.
“A benção, Senhor.”
Uma voz masculina, grossa, encantadora e calma respondeu do outro lado.
“Deus te abençoe. Quer dizer, Eu te abençoe.”
“Senhor, meu assistente acaba de me informar que Maria dos Remédios passou desta para melhor.”
“É verdade, ela estava aqui comigo agora mesmo tomando um chá.”
“Mas e agora? Senhor, o trabalho vai triplicar. A saúde pública é muito precária, a sociedade está de cabeça para baixo, serão milhões de assassinatos, suicídios, mortes! Como eu vou dar conta disso tudo sozinha?”
“Não te preocupes, dona Morte. Eu recebi uma ligação da maternidade dizendo que a Cura acabou de nascer. A pobre mulher já estava muito velhinha, coitada. Precisava descansar também. Ai ela ligou para mim, conversei com ela e ficou decidido isso.”
“E por que ela não morreu de morte natural? Por que assaltaram a pobre?”
“Ah, ela falou que queria que alguém fizesse algum uso dos seus antídotos.”
“Mas um ladrão?”

O Senhor riu com a pergunta da bonita moça, antes de respondê-la.
“Foram pessoas contratadas por mim. Ela me disse que gostaria de ser lembrada de alguma forma. Então, se a senhora ligar a tevê agora, assistirá a sua ‘tragédia’ no noticiário nacional. Mulheres. Sempre querendo chamar atenção” – riu o Senhor por entre as últimas palavras profanadas. Ele esperou pacientemente por um comentário da dona Morte.
“Eu achei que o Senhor podia cuidar da cura dos humanos sozinho.”
“Ah, Dona Morte. E quanto ao meu descanso? Preciso repousar também! Eu já sou a Fé, a Salvação, o Refúgio de tanta gente. Bom, creio que a senhora está mais aliviada agora. Por obséquio, busque a alma da nossa querida Maria dos Remédios para que ela possa entrar de fato no reino dos -” O Senhor calou-se e tudo que se pode ouvir foram vozes do outro lado da linha.

A Morte se assustou e perguntou desesperada ao telefone: “Aconteceu alguma coisa por ai, Senhor?”
“Ah, não muito. É que eu tava de saída pro cinema com o Jesus e me atrasei.” Ele se virou e falou com o filho por um breve momento e depois retornou à ligação. “Oh, dona Morte, me desculpe, que má educação a minha! Quer ir ver um filminho?”

Beatriz Noele

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Fundamentos para um pernalta aprendiz


Venha. Apoie-se em mim. Ponha, com cautela, uma das pernas à frente do corpo. Finque-a bem ao chão. Ela o ajudará a ficar de pé. Isso, assim. Segure firme aqui, neste ombro, força e-um-e-dois-e-três...de pé. Agora vá, ande. Vou segurando sua mão até sentir que você já pode seguir sozinho. Prefira os passos largos e firmes, mesmo quando indecisos. Busque sempre o que se mostra adiante. Você não deve recorrer ao aquém até que descubra o seu eixo. E antes de desvendar o seu equilíbrio - que não é uma quimera, é apenas um equilíbrio - tente não parar. Caso o faça acabará caindo. Não que isso seja um problema, na verdade isso é inevitável. Vai cair para descobrir que cair não é o fim. E aprenderá a encher de fé cada passo seguinte, mesmo mediante sutis desequilíbrios, mesmo diante da escolha por caminhos pouco confiáveis. Se o chão passa a ser duro, com jeito de impiedoso, você tem um motivo a mais para tornar a sua marcha ainda mais firme. Não tema ranhuras ou dores porque - não se zangue com a franqueza - isso também é inescapável.

Vou largar a sua mão, você não precisa mais da minha. Vai, continue andando mesmo assim. Continue até...caiu? O tempo assumirá a missão de sarar se você aceitar a de se levantar novamente. E sempre mais uma vez. Quando souber ser confiante e certo de si, vai ser também capaz de se fazer vertical sem a minha ajuda e sem o ombro de mais ninguém. E daí em diante a gente passa a ser sua plateia. Quem sabe participativa, do tipo que aplaude ou joga tomates, quem sabe apenas plateia. Você pode decidir por uma e/ou pela outra, quase sempre. Ou melhor, abandone o quase. Comporte-se como se pudesse decidir sempre.

Então um dia você sequer carecerá de plateia, mesmo que ela nunca deixe de existir e que você goste de saber que ela está lá, por você. Dia que não precisa ser hoje, nem o dia das 24 horas seguintes. Será um que não cabe em meticulosos planejamentos porque o tempo da gente, o seu tempo, não se mede por doces com velinhas.

Escute, enfim, o som que se aproxima sem pressa. Acompanhe a compasso como puder. Solte-se, inclusive das suas vergonhas. Admita a sua fantasia - e todas elas - e faça o favor de não deixar este carnaval para um quando ainda mais tarde.

Rafaela Fernandes

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Não sei o que eu quero dizer com isso


Então você quer mesmo saber?

Aquilo foi uma fuga.

Fugi. Fale que foi porque precisei e não havia mais outro jeito. É como eu prefiro que seja dito.

Precisei ver-me longe, cabeça alforriada, tronco e membros leves. Leves e livres da vida que eu os obrigava a ter.

É que essa vida, aquela do dia em que parti, já não me vestia mais. Sentia-me tristemente justa, quieta e sem fôlego. Peitos saltavam fora, esfolados. Barriga estreita, postura oblíqua e traseiro murcho. A pele sem cor - descobri depois - era culpa do sangue circulando errado, perdido feito meu juízo. Esmagada, tinha todo o meu corpo inútil, preso em si.

Optei por novas vestimentas. Largas, com cores em guerra e cortes improváveis. Umas que fossem – e foram - capazes de me fazer solta dentro de tantos laços e cadarços.

Entenda, portanto, que as lançar sobre este corpo oco, acompanhando-as cair-me bem, foi irresistível. E elas caíram firmes, certeiras, sem obedecer às previsões, aos desenhos ou aos contornos pré-estabelecidos. Eu era, finalmente, apenas um esboço de convicções tolas. Natural como a nudez. Palavra dessa modinha cafona? Esperança.

Não precisa esquecer-se entre cantos pensando e tendo medo por mim. Não por isso, não agora. Cuide só do que é seu que eu me prefiro só, só de mim. De mim definitivamente. Diga que eu não precisava de outras cores e de casas vizinhas para fazer-me minha, que eu concordo com você. Mas se livre ligeiro dessa mania de buscar -e, se o caso for, inventar - um sentido para toda coisa que lhe aparece. Faça um embrulho com esses sentidos e o ofereça às mãos do seu futuro. Tão previsível e finito quanto o meu. Quem sabe ele aceita e gosta e usa em alguma hora.

Porque o meu se nega. E porque eu me sinto cheia de sentidos, sentidos para uma vida comprida inteira, mas nenhum deles explica coisa alguma.


Rafaela Fernandes

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O prazer foi todo meu


Da janela o sol tentava ser atraente. A brisa, de longe, lançava a promessa de uma sensação térmica mais pacífica. Mas daqui, de bem perto, minha pele pálida e fina pedia para eu desistir de vultosa ousadia. O sofá era bom o bastante para uma tarde de sábado. Além de que o movimento, mesmo discreto e sutil, convida o suor e assusta o humor que já quase não me alcança.

Ao ouvirem o dilema e perceberem que estavam geograficamente no meio dele, as pernas resolveram definir o fim daquela disputa enfadonha. Ordenaram que me pusesse de pé e fosse mesmo andar. Isso, sem apertar os olhos e sem julgar a mãe alheia. Andar de verdade, vendo a paisagem mudar. E sempre mudar. Ver o que tem até onde elas agüentam ir sem pensar no que farão para voltar.

Obedeci. Ando meio obediente, é verdade. Tenho pensado em criar ordens, se é esse o clamor maior, para depois apreciar os dominós desmoronarem. Um após o outro. Organizados e fatais. Adoro a desordem que procede a ingênua sensação de ordem plena. É como devorar um petit gâteau após padecer semanas em um sofrido regime.

Devo ter andado muito. Parei quando me encontrei acompanhada apenas de duas pernas doloridas. Sentei com alívio por saber que ainda havia chão ali. Preciso revelar que arenoso e salgado, mas um chão de verdade e até firme.

Não sei quantas pessoas cruzaram a minha visão e nem lembrei que a passagem delas revelava o correr manso e incansável do tempo. Esqueci dos 30 e muitos graus, do cabelo desarranjado pelo vento e de algumas lágrimas que, por muitos motivos fúteis, suicidaram-se do meu queixo. Tentei imaginar que no ato não havia desespero ou um sofrer dramático, só uma gana bonita de liberdade.

Até que alguém se aproximou mais do que os outros passantes. Eu te conheço? Ah, não. Ele só está tirando fotos. Deve ser turista. Mas esse jeitão esquisito...espere aí, eu te conheço? E antes que insistisse na dúvida ele acabou com ela sentando-se ao meu lado. E eu nem o convidei. Você estava me seguindo? Ele riu, desconversou e perguntou se eu estava só. Eu estava me fazendo companhia, uma ótima companhia, mas respondi olhando para os lados e mostrando que não havia ninguém, além dele, com jeito - ou distância- de quem faz companhia.

Obrigou-me a caminhar até mais longe. Mandou uma conversa de que sempre ia lá quando criança. Acreditei e fantasiei-o esquisitinho brincando com fedelhinhos, lambuzando-se naquela areia grudenta e correndo para lavar-se no mar. Tentava, mesmo assim, permanecer só, mergulhada em idéias mirabolantes e desejos atrevidos. Mas ele parecia fazer questão de nos meter em um mesmo pensamento. Cansada, livrei-me por instantes da minha má vontade e resolvi dar trela ao maluco que estava ao meu lado.

Acabei rindo. Ele me emprestou umas idéias infundadas e despretensiosas e eu as transformei em qualquer esperança, em uma alegria sem razão. Ele era um avesso tão colorido e vibrante quanto a face que se põe à mostra. E ele sabia sorrir de si, sem deboche. Era um riso sério, de quem acredita no que é.

Levou-me de volta para casa. Fez questão de fazê-lo por um caminho diferente do que eu havia feito para ir. E fez certinho, como se soubesse do meu dissabor em fazer caminhos de ida invertidos. Quem contou para ele que eu precisava de tudo aquilo, justo daquele jeito e naquele momento? Acho que cheguei a agradecer, mas talvez ele nem tenha ouvido. Obrigada por ter me seguido, eu poderia ter dito.

Usei o curto caminho até a minha casa pensando que eu deveria dar à sua boca o bem que ele fizera à minha cabeça, naquela tarde. Não conseguia evitar esse pensamento oportunista, e não me peça explicações mais.

Aqui. Minha casa é essa, lembrei. Olhei-o e me aproximei, mas o meu juízo guiou-me até sua bochecha. Ele falou que era sempre um prazer rever-me. E eu só consegui dizer que o prazer tinha sido todo meu.

E foi todo meu mesmo, bom menino.


Rafaela Fernandes