sexta-feira, 5 de agosto de 2011

(Des)Enxergar...

O despertador tocou. Aquela conhecida sensação de querer ficar mais cinco minutinhos na cama dominou meu corpo por inteiro. Virei de lado e aos poucos, tentei abrir os olhos. E não consegui.

Desespero. Era manhã e eu sabia, mas meu dia continuava escuro. Sem lua e sem estrelas. Assustador. E, de repente, minha freqüência cardíaca chegou à estratosfera, mas mesmo assim não foi suficiente para rasgar aquela névoa negra que encobria minha visão e o despertar do amanhecer.

Tateei ao meu redor e ele estava ali. Sereno. Sua respiração era superficial como uma pluma, e seu ronco baixo me fez perceber que ainda estava dormindo.

“Não consigo ver. Não consigo ver nada.”

Desolhar o mundo. Para mim, era o fim. O mundo nunca teria o mesmo brilho e nunca seria aquele mundo redondo cheio de água. Nunca mais. Até eu ouvir aquela melodia suave que me reconfortava toda manhã.

“Psssiu...”

Eu senti sua mão enxugar minhas lágrimas e meus batimentos foram desacelerando, como se uma dose extra de calmante entrasse devagar em minha alma e fosse povoando aos poucos o meu corpo. Senti sua mão afagar meu cabelo e sua boca cerrar a minha. E de repente, eu estava no meu mundo, naquele no qual queria estar e que só existia para mim, aqui dentro.

Eu corria em um gramado perfeito, cabelos ao vento, pés tocando o orvalho daquela manhã, sentindo aquela brisa bagunçar minhas madeixas. Parei e olhei para trás. E ele estava ali, ao meu lado. Comigo. Como esteve todos os dias, em todas as horas e minutos. Até quando eu não podia ver. Até quando eu não queria ver. Até quando eu não era capaz de enxergar aquilo que estava na minha frente, gritando para ser notado, uivando de dor.

E, depois de navegar por esse mundo que não é só meu, após viajar por esta aventura nossa, construir esse castelo cuidadosamente com todas as células do meu corpo e todos os sentimentos de minha alma, eu tentei devagar abrir os olhos novamente. E vi. Vi aquilo que falava, debatia-se e chorava de dor em seus olhos, sem que fosse necessário se dizer uma palavra para se fazer entendido. Enxerguei o que finalmente estava se refletindo em meu rosto todos os dias, ao invadir profundamente seus olhos cor de mel.

Pisquei e me enchi. Enchi-me daquilo mais nobre que eu tinha para oferecer em troca. Para arrancar o desespero que faiscava em seu olhar. Amor. Levantei minha mão e afaguei seu cabelo. Segurei sua mão, beijei-a e, com uma lágrima escapando gentilmente dos meus pequenos olhos, eu tinha a certeza que eu podia mais. Que eu posso mais. Por ele. Por mim.

"Apenas feche os olhos e me dê a mão, que eu serei seu guia. Conforte-se em meu puro acalento. Apenas feche os olhos, sem hesitar. Sem pensar duas vezes se olhar o mundo real é mais prudente que sentir aquele feito só para nós dois."

Beatriz Noele

domingo, 29 de maio de 2011

Não é fácil, é estranho

Não é fácil separar.

Não falo em separar as roupas lavadas de uma casa com quatro mulheres quase iguais, decidindo o que vai para cada armário. Nem falo em separar o feijão bom daqueles outros que acabam vindo no saco ou em separar as rodelas de cebola crua da paçoca. Vai dizer que nunca separou os coentros da sopa? Toma tempo, consome alguns minutos de paciência, mas há quem tente, aprenda com a repetição e até faça isso com agilidade.

Também não se trata de separar vida profissional de vida pessoal, separar os dias de cachaça/som alto dos dias de chocolate quente/filme ou os dias das gargalhadas fáceis dos dias de chorar vendo o comercial da coca-cola. Separar os dias de revolta, dos dias de plena calmaria. Parece-me que o crescer cuida disso e muitas vezes essas separações fazem-se até inconscientemente, sem sequer deixar seqüelas.

Mas, enfim, no que eu falo não há crescer, não há repetição ou coisa alguma que ensine a fazer com leveza.

Porque eu falo em separar sonhos. Decidir quais são meus, quais você deve levar e quais eram tão nossos que não há outra escolha que não deixar virar nuvem. Falo em separar os dias bons, entendendo que a partir de agora há em você alegrias que não nossas e que o inverso também é verdade. Separar também os dias de desespero, em que se chorava para alguém mais ouvir. Não é fácil separar o meu chegar em casa do seu, separar os nossos fins de semana. Como explicar que posse, solidão, amor e crença em um par são sentimentos tenuamente distintos, mas sinceramente distintos? Separar os meus desejos da minha límpida razão dói. E dói devagar, porque só dói quando o tempo passa e só vai parar de doer - ou a gente só vai se acostumar com a dor - se o tempo passar.

Não quero separar lembranças, elas são docemente indivisíveis. Só que preciso redescobrir o que de nós sou eu e aonde esta tal de mim quer chegar. Preciso permitir que você faça o mesmo. Minha alma pede ao meu juízo para que ele busque o sentido dos meus passos e, para isso, preciso tentar separá-los dos seus.

Mas não, meu bem. Não é fácil nos separar e eu ainda nem sei bem como isso se faz. É estranho.


Rafaela Fernandes

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Carta à minha alma

Se eu soubesse qual onomatopeia usar, começaria este recomeço com uma que descreveria o ranger de um movimento enferrujado. Cada passo traduzindo, com a dor do mover-se, o arrependimento do parar.

Eu sei que não tenho razão. Não se pode fazer isso assim, não com você. Não se pode fingir que calado está algo que se esgoela, que implora - feito filho mais velho após nascimento do seguinte - por um tantinho que seja de atenção. Não se pode fazer as atrocidades que eu te fiz, feito uma mãe desnaturada. Pobre filho mais velho. Pobre de você, minha alma.

Vida nervosa, cabeça feito pião – que logo que pára, cai -. Não te deixei para depois porque quis ou preferi. Fiz isso quando esqueci como se fazia para te escutar em silêncio. Deixei você só porque o barulho de fora para dentro era um muito mais alto do que aquele que vinha de você (em mesma direção, mas sentido tão oposto). Ou até mesmo porque eu fiz daquele maior por medo de saber do que você estava prestes a despejar nos meus olhos. Não estava pronta para ver. Sei que ainda não estou, mas já não posso te adiar. Continuar sem você é penoso demais para este corpo estreito.

Sei que você sente dor, que sente medo. Sei que fui exageradamente cruel quando o caso era você. Atropelei você diariamente com as minhas mirabolantes ambições juvenis, aquelas de virar uma super-heroína, feita de ferro, com um catálogo de super poderes e super conquistas dignas de jornais. Quanta ingenuidade... Como se não soubesse que tudo que é super é também super rápido. Como se não percebesse que adiantar o tempo é também perder alguns anos, é ganhar cabelos brancos quando se tem pouco mais do que duas décadas de vida. Como se eu não quisesse reconhecer a fraqueza que sei que é tão minha, tão nossa.

Preciso te entregar um bocado de paz, minha alma pequena. Pedir o seu perdão por todo o mal e a sua ajuda para continuar. Pensei que pudesse, vez ou outra, ir sem você aqui. Posso nunca! A gente é toda uma da outra e só pode ser se for assim. Sem você sou qualquer rumo sem fé. Só a gente sabe.

Vou esperar a sua volta aqui, quieta, mas sem pestanejar. Quando a gente se encontrar de novo eu vou prometer te deixar falar e vou até reaprender a falar em seu nome, quando assim sentir que tem que ser. Vou te mostrar um sorriso verdadeiro e um abraço suspiroso, aliviado. A gente vai gastar quanto tempo for preciso para voltarmos à condição de corpo e alma. Prometo!

Promete, então, que não demora, minha pequena?

Vou já esquentando o seu leite e pondo o nosso Chico para falar das nossas coisas com jeito de música.

Rafaela Fernandes

sexta-feira, 18 de junho de 2010

E eu oceano


Se você estivesse do lado de dentro, assim como eu, conseguiria ouvir o barulho da chuva lá fora, colidindo com as folhas das plantas, chocando-se com o telhado, tamanho era o silêncio aqui.

Um silêncio tão quieto e acomodado, que poderia até se ouvir os pensamentos. E eu os escutava com avidez. Pensamentos que tornavam esse silêncio barulhento e desesperado demais, que acelerava o coração no peito e parecia gritar como um trombone, chacoalhando as vísceras, levantando as veias nas têmporas, expulsando a água dos olhos. E doía, doía.

Cada vez que ele falava, parecia que vinha um turbilhão de ondas em minha direção, tentando ao máximo afogar o novo pensamento desenquadrado do contexto. E as ondas não desistiam de me colocar para baixo, de me fazer rolar dentro d’água. E cada vez que eu tentava chegar à superfície e puxar fôlego, vinha uma nova onda, com uma nova velocidade e com uma nova verdade para estampar em meu rosto, e fazer com que eu desistisse de buscar justamente por aquele fôlego inapropriado e sufocante.

E eu ficava dentro d’água. Lá era melhor. Meus pensamentos saiam com uma entonação abafada e eu mal podia escutá-los. O silêncio já era mais tolerado, como se a água fosse uma morfina, a qual entrava devagar em meu corpo e instaurava uma quietude. E eu fechava os olhos e me entorpecia naquele mar de morfina, o único que conseguia desaguar em mim. E a cada injeção, meus pensamentos eram calados, adormecidos. A cabeça ficava leve, o corpo também. Cansados.

E eu sentia, a cada minuto que passava, meu corpo indo devagar à superfície, como se um imã me puxasse aos pouquinhos para alcançar aquele outro oceano de ar novo, puro. E de repente, eu abria os olhos, muito pesados e anestesiados. E via a luz do céu; e como se nunca tivesse sentido o cheiro do ar, puxava-o o mais forte que eu podia, e enchia os meus pulmões como se esse ar fosse feito de alívio.

E eu ficava ali parada. Meus pensamentos, os quais adoravam me afogar, ainda adormecidos, e eu aproveitando ao máximo aquele momento em que eu poderia descansar e ganhar um pouco mais de força, para que no próximo maremoto eu buscasse o fôlego certo, sensato.

É a segunda coisa mais árdua e agonizante de se fazer. Quando se quer tanto um fôlego ilícito, é como se de repente me tirassem todo o seu oxigênio e nada mais restasse a ser feito. A não ser fechar os olhos e esperar, esperar e esperar.

Beatriz Noele

domingo, 16 de agosto de 2009

Flores para Dr. Francisco

Primeira dia de aula incomum:

As características físicas e psicológicas variam de indivíduo para indivíduo e, dentre elas, a inteligência humana pode ser inclusa como uma propriedade que também não é constante na população. Tal atributo é mensurado através de testes que indicam o quociente de inteligência (Q.I.), termo criado pelo psicólogo francês Alfred Binet. Assim, é possível encontrar diferentes valores para o Q.I., assim como é natural o desejo de se trabalhar com as pessoas consideradas portadoras de inteligência acima do normal (Q.I. superior a 115).

Entretanto, diversos cientistas e estudiosos do assunto concordam que o Q.I. é apenas uma parte de um conjunto de habilidades que podem ser encontradas em um indivíduo, como linguagem e memória. Tais habilidades são susceptíveis a mudanças e, portanto, não se pode concluir que o Q.I. é uma característica imutável, idéia essa transmitida pelo artigo.

Além disso, o Q.I. não abrange outras características de inteligência, como a criatividade e as habilidades artísticas. Muitas pessoas pertencentes aos 95% (aqueles que possuem um Q.I. inferior a 115) têm outros dons, como pintar, cantar, ou tocar um instrumento, e podem com certeza ter grande sucesso, apesar de seu quociente de inteligência não ser superior a 115. Possivelmente, o Q.I. esteja relacionado ao sucesso em muitas atividades acadêmicas, mas ter um Q.I. elevado não é necessariamente a única esperança de se ter sucesso na vida.

Pode-se exemplificar tal argumento com a história do livro “Flores para Algernon”, de Daniel Keyes, que conta a história do personagem Charlie Gordon (Q.I. de 68), o qual passou por uma cirurgia (antes testada em um rato de laboratório chamado Algernon) para atingir um estado de superinteligência. Porém, seu aperfeiçoamento mental era apenas provisório e sua inteligência foi se desvanecendo ao longo do tempo. Mas essa experiência também ajudou o personagem a aprimorar suas habilidades emocionais e sociais e, assim, no final do livro, ele volta a ser um homem de Q.I. baixo, só que com grande conhecimento no campo psicológico, na administração de sentimentos e emoções. Ele deixa de ser solitário e infeliz e passa a ser uma pessoa feliz.

Com certeza, Charlie Gordon é um exemplo para comprovar que ninguém pode ser taxado de medíocre por possuir um Q.I. inferior a 115. Muita gente pode ter um brilhantismo excepcional, mas ser incapaz de controlar sensações como raiva e impaciência, assim como de respeitar os sentimentos e pensamentos do outro, e até mesmo não ser capaz de admitir um único erro cometido por si próprio. Além disso, é estudada a correlação de que pessoas com um Q.I. mais alto têm, em média, indicadores socioeconômicos maiores, possibilitando um acesso melhor à saúde e informação. Desta forma, indivíduos que chegam ao ensino superior não tiveram igual qualidade de ensino nos níveis médio e fundamental, mas com esforço e força de vontade, eles podem atingir sucesso acadêmico assim como aqueles contidos nos 5%.

No meu ponto de vista, ninguém é medíocre ou passa pela vida sem deixar nada de útil. Estudar é um dom, assim como pintar, escrever e ensinar. Ser inteligente é uma qualidade que abrange muitas subdivisões e que não pode ser medida apenas considerando o número do Q.I. Tendo ou não Q.I. maior que 115, fomos capazes de chegar até aqui, de estudar na melhor universidade do Nordeste e de participar de um curso muito renomado e difícil como Medicina. Com certeza, deixaremos nossa marca nesse curso, deixaremos lembranças e feitis úteis para os que já estão dentro desse mundo e para aqueles que lutam para entrar nele. O importante é querer, esforçar-se e, acima de tudo, ser feliz.

Beatriz Noele

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Não se trata de um mero barro oco


Ele acorda trepidante. Parecia-lhe que a hora, que na verdade ainda nem chegara, já havia passado do ponto há muito. Ignora a constatação que vem em seguida, da sua janela. A de que o céu ainda não faz sol e de que os passarinhos ainda roncam, em vez de cantar. O universo conspira a favor do sossego da sua cama, mas o menino resiste, quer começar cedo. Já acordou e já sorriu para o quase-dia, dando sinal de que aquele despertar não tinha mais volta.

Ainda com os olhos amiudados pelo sono, lava o rosto marcado pelos sonhos da última noite, prepara as mãos calejadas pela sobrevivência e lança-as à obra. Barro bruto, com jeito de coisa alguma. Frio, como se assim declarasse sua carência de alma capaz de fazer um calor qualquer. E o menino, agora já assumindo jeito de homem, põe em mãos a responsabilidade pela imprevisível criação.

Molha aqui, modela assim. Remove dali, acrescenta onde der. Há algum racionalismo sim, mas a emoção revela-se majoritária em cada singelo toque. As mãos cuidadosas – e um tanto trêmulas pelo binômio desejo-medo - dão ao barro moço curvas cheias de boas vontades. Das mãos criadas partem braços frágeis e daí um corpo inteiro, cujo desenho tem o formato das mãos de onde tudo partiu. Não duvide da impressão, trata-se mesmo de um ciclo imbuído de vício. Tudo começa onde tudo termina para começar de novo.

Antes que alguém questione, o moço reforça: esta obra não nasceu por um fim e vai viver da beleza da repetição. E a obra, que acaba de ganhar um coração (ou de redescobrir o seu, pouco importa), garante que, agora, o que mais sabe desejar é permanecer nas mãos desse que a criou. Não por mera gratidão, mas por sincero querer. Quem te disse que barro não ama?

Rafaela Fernandes

sábado, 13 de junho de 2009

De primeira viagem

Calma, calma! Não precisa desse alvoroço. Você também é de primeira viagem? Então, entende do que estou falando. A animação é muita, mas, junto dela, também caminha a aflição, como duas irmãs siamesas. Uma deu um passo, a outra deu junto.

Aí você sái de casa, anda a cidade inteira e não encontra nada. Sabe quando você já pensa no que quer antes mesmo de saber se está à venda? E quem disse que existe? E quem disse que vai ter exatamente como você imaginou? Bordas pretas, quatro espaços, dois em pé e dois deitados.

De repente, você encontra, ufa! E resolve dar uma realmente de “primeira viagem” e fazer todo o resto. O coração que é bom e custa uma nota preta foi deixado um pouco de lado. Levou-lhe horas para ficar pronto, mas ficou do seu agrado. Deu até vontade de comer os bombons.

Mas agora que passou e a calmaria reina por completo, não me arrependo do tempo que correu rapidamente pelos meus olhos enquanto eu o preparava carinhosamente. E espero que tenha acontecido o mesmo com você.

Surpresa!

A recíproca foi muito verdadeira. As flores eram lindas, e ouvir o que mais se espera também foi maravilhoso, quiçá o mais perfeito dos presentes. Tem coisa melhor do que ser de primeira viagem? Posso até garantir que agora eu espero ansiosamente para o embarque da próxima aventura.

E entre lágrimas e sorrisos de felicidade, eu virei para ele e disse “eu também te amo!”

Beatriz Noele