segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Da mudança do medo...ou do medo da mudança?

Toda quarta-feira, ela vestia sua melhor roupa. O seu melhor vestido escoltava sua silhueta delicadamente desenhada, valorizando sua forma instrumental de violão e esvoaçando-se ritmicamente com o andar daquela moça, como a perfeita combinação de uma melodia com sua letra. Sua sombra escura contornava seus olhos grandes e brilhantes, fazendo sintonia com o azul profundo do seu olhar. Abria o armário e calçava seus melhores sapatos. Eram altos e desvendavam o segredo dos seus pés praticamente nus.

Desligava as luzes de casa e sempre deixava a janela aberta, para o luar iluminar seu quarto escuro. Andava desacompanhada na noite fria, tanto de braços de lã ou de humanos. Como sempre.

Entrava no bar e sentava-se na mesma mesa de toda quarta-feira. A mesa do canto, da qual se tinha a visão completa do ambiente e a escondia na sombra, pela falta de luz. Apenas ela e o luar brincalhão que conseguia escapar por entre a vidraça, de vez em quando. Pedia a mesma bebida: vodka com gelo. E esperava.

Na mesma hora, toda quarta-feira, ela o observava entrar, sentar-se na mesa do outro lado do recinto e ordenar o seu passa-sede habitual: cerveja. O cansaço expresso sem vergonha em seu rosto combinava com suas calças largadas e surradas, daquelas que já tinham “muitos anos de prática no negócio”. Sua camisa de botão mal passada já havia sofrido o desabotoar dos dois primeiros proprietários e estava aos gritos com seu par de tênis, o qual, é válido salientar, já havia alcançado a meia-idade.

Ela notava, de longe, o afogamento precoce daquele homem no copo que transbordava a frieza que o esquentava, afundando-se na sua própria desventura. Acompanhado de homens assim como o qual, ele acendia o seu cigarro e bebia sua água. Toda quarta-feira.

E toda quarta-feira, após terminar sua única dose, ela se levantava, recolhia sua cadeira, deixava uma gorjeta para o garçom e andava com seus melhores sapatos até a porta, de onde jogava um último olhar, com seus olhos grandes e brilhantes, para aquele homem.

E mais uma vez, toda quarta-feira, saía com sua certeza: de que seu melhor vestido e seu melhor par de sapatos não seriam capazes de cortar as raízes grossas e fortes daquela pequena metáfora de árvore humana.

A despeito de todos os problemas dele, ela comportava uma falha muito maior: tinha medo de mudar a roupa.

Beatriz Noele

domingo, 7 de setembro de 2008

Entre uma vida e outra


Sem mais, ele entregou-lhe o roteiro da próxima temporada. Descobrira ela, aí, que dentro daquele agressivo punhado de papéis havia uma nova personagem, cenários inusitados e coadjuvantes esquisitíssimos. “Mas tudo bem”, disse ela, conformando-se. Ela sempre dera conta e não seria esta vez uma exceção. Não esta e não agora que ela precisava tanto. Um tanto que era capaz de deixar a sua rotina oca. “Vai ficar tudo bem”, repetia ela na solidão daquela trilha comprida, deixando que a mentira ecoasse até soar tal qual uma verdade.

Juntou seus três ou quatro trapos, encolheu-os em uma mochila, pôs os cabelos em uma liga esgarçada e seguiu cheia daquele seu ar mafaldiano. A partir de agora todo seu repertório deveria ser escondido em qualquer gaveta do seu armário embutido e ela seria apenas aquilo que constava nos tais papéis.

Tomaria três banhos por dia, lavaria os cabelos dia-sim-dia-não, usaria anti-séptico bucal, trocaria as escovas de dente a cada três meses, dormiria por oito horas das suas 24, leria dois livros rechonchudos por semestre, diria um amistoso bom-dia ao porteiro metido e não desperdiçaria seu precioso tempo com parangolés.

Na segunda-feira acordaria esbanjando disposição. Trabalharia sem poréns e peraís. E, após um almoço verde temperado pela brisa carinhosa que invadia sua janela cheirando a mar, retomaria sua vontade e concluiria um segundo expediente regando-o com aquele fiel bom humor. Ao sair, driblaria o trânsito com as duas rodas da sua bicicleta e chegaria à academia a tempo de fazer a sua série completa. Na hora prometida estaria na devida casa para um disciplinado jantar, algumas horas com os livros e tantas outras com a cama. Nela teria um sono justo, profundo e incorruptível. Talvez sonhasse, talvez nem lembrasse. Restava pouco tempo para essas coisas abstratas. Você sabe como é.

Nas horas restantes desejaria só os homens corretos, freqüentaria só os melhores bares, serviria de companhia apenas para os de boa família e nunca perderia o controle entre uns goles e tal. Conversaria sobre atualidades, artes e ciências exatas. Mas não faria nada, que não assentir timidamente, quando o assunto remasse ao desconhecido.

Não escapavam, assim, horas para lamúrias, dilemas e crises. O linear de sua vida recusava-se a parar para rever, reponderar, reviver e qualquer outra ré. Não sabia se já havia sido ferida, tampouco se já havia sido amada. Sequer se doía por ser só, já que nunca soubera o que era ser par. Desmembrava o papel de ser enxugando os intervalos do pensar e do querer. Era assim porque alguém quis e não haveria de ser o avesso.

Um dia, enfim, deitaria enrolada, pequena e albina. Dormiria feliz para não acordar mais.

Rafaela Fernandes