domingo, 7 de setembro de 2008

Entre uma vida e outra


Sem mais, ele entregou-lhe o roteiro da próxima temporada. Descobrira ela, aí, que dentro daquele agressivo punhado de papéis havia uma nova personagem, cenários inusitados e coadjuvantes esquisitíssimos. “Mas tudo bem”, disse ela, conformando-se. Ela sempre dera conta e não seria esta vez uma exceção. Não esta e não agora que ela precisava tanto. Um tanto que era capaz de deixar a sua rotina oca. “Vai ficar tudo bem”, repetia ela na solidão daquela trilha comprida, deixando que a mentira ecoasse até soar tal qual uma verdade.

Juntou seus três ou quatro trapos, encolheu-os em uma mochila, pôs os cabelos em uma liga esgarçada e seguiu cheia daquele seu ar mafaldiano. A partir de agora todo seu repertório deveria ser escondido em qualquer gaveta do seu armário embutido e ela seria apenas aquilo que constava nos tais papéis.

Tomaria três banhos por dia, lavaria os cabelos dia-sim-dia-não, usaria anti-séptico bucal, trocaria as escovas de dente a cada três meses, dormiria por oito horas das suas 24, leria dois livros rechonchudos por semestre, diria um amistoso bom-dia ao porteiro metido e não desperdiçaria seu precioso tempo com parangolés.

Na segunda-feira acordaria esbanjando disposição. Trabalharia sem poréns e peraís. E, após um almoço verde temperado pela brisa carinhosa que invadia sua janela cheirando a mar, retomaria sua vontade e concluiria um segundo expediente regando-o com aquele fiel bom humor. Ao sair, driblaria o trânsito com as duas rodas da sua bicicleta e chegaria à academia a tempo de fazer a sua série completa. Na hora prometida estaria na devida casa para um disciplinado jantar, algumas horas com os livros e tantas outras com a cama. Nela teria um sono justo, profundo e incorruptível. Talvez sonhasse, talvez nem lembrasse. Restava pouco tempo para essas coisas abstratas. Você sabe como é.

Nas horas restantes desejaria só os homens corretos, freqüentaria só os melhores bares, serviria de companhia apenas para os de boa família e nunca perderia o controle entre uns goles e tal. Conversaria sobre atualidades, artes e ciências exatas. Mas não faria nada, que não assentir timidamente, quando o assunto remasse ao desconhecido.

Não escapavam, assim, horas para lamúrias, dilemas e crises. O linear de sua vida recusava-se a parar para rever, reponderar, reviver e qualquer outra ré. Não sabia se já havia sido ferida, tampouco se já havia sido amada. Sequer se doía por ser só, já que nunca soubera o que era ser par. Desmembrava o papel de ser enxugando os intervalos do pensar e do querer. Era assim porque alguém quis e não haveria de ser o avesso.

Um dia, enfim, deitaria enrolada, pequena e albina. Dormiria feliz para não acordar mais.

Rafaela Fernandes

3 comentários:

Beatriz Noele disse...

Me perco até em imaginar se a vida fosse tão "simples" assim.

Muito bem composto, vindo de uma flor assim como você!

Beijo, querida!

Bazar do Desapego disse...

"Vidas possíveis" me encantam, assim como seu belo texto!
“Vai ficar tudo bem, repetia ela na solidão daquela trilha comprida, deixando que a mentira ecoasse até soar tal qual uma verdade" uauuuuu
Se quiser seguir uma trilha http://pitadascotidianas.blogspot.com/
Posso colocar seu link no blog?
Beijocas

Unknown disse...

Preciso que alguém me entregue os meus papéis...urgentemente!
You know what I mean ;)

Me lembrou um trecho de A Hora da Estrela que diz "Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser".

Te amo!