sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Um anonimato à parte

“Oi, boa tarde.”
“Boa tarde. Como iniciante neste grupo, gostaríamos que falasse um pouco sobre você.”
Tomara tal iniciativa naquela mesma manhã. E não foi nada fácil. Seria uma mudança drástica no seu dia-a-dia celestial. A rotina que lhe perseguia constantemente abriu aqueles olhos graúdos, já cansados de esbanjar seu brilho. Este já se encontrava ofuscado e perdido.
Ela acordava todas as manhãs para cantar a mesma trilha sonora de todos os dias. Seus cabelos amanheciam em nós, os quais desmanchavam seus muitos cachos que disputavam furtivamente por um olhar à claridade da manhã.
Bebia uma xícara de café, enquanto folheava as páginas do jornal, sem se abalar com nenhuma manchete. Importar-se com o supérfluo já tinha sido um sintoma que lhe pertencera, antes de ser exaurido junto da estimação a si mesma.
“Não sei se consigo.”
“Tudo bem. Então vamos iniciar de outra forma. Que tal-”
“Já faz quase dez anos.”
O susto foi inevitável.
“Que o mantém?
“É.”
“E como você se sente?”
“Não sei descrever.”
“Mas, você quer largá-lo?”
“Vim aqui tentar descobrir isso.”
Às vezes, sofrer leva o ser humano a cometer devaneios e adquirir hábitos equivocados. As decorrências de uma vida levaram uma existência a tomar atitudes ímpares. E ela sabia que a lambuja inicial seria o primeiro passo para o seu qüiproquó. Foi de propósito. Esse vício frio lhe conferiria proteção. E seria com este pensamento certeiro – e, mais tarde, impreciso – que, por muitos anos, ela caminharia de mãos dadas, cotidianamente.
“Teve-se início nos meus dezoito anos.”
Os aferros já são por si insistentes. Os aferros de uma adolescente são insistentes, amargurados, carentes de eufemismo. São trazidos consigo por uma eternidade, até o mais íntimo da dor, da quebra da estima, da tomada da esperança.
Ela chegara em casa e três coisas a esperavam: um par de meias deslembrado, um bilhete despojado e algumas muitas lágrimas. Três vezes consecutivas. E pela terceira vez, a culpa não estava nela. Decidiu, portanto, arrancar de si um passado incoerente e lastimoso em troca de um futuro de uma coisa só. Ou, diria, de um nada que lhe havia sobrado.
Ela levaria quase dez anos para tentar começar a entender. E traria consigo as mãos confortáveis de um amigo que, ao apertar as suas, causar-lhe-ia uma dormência que a faria resistir. E esquecer.
Ela não gostava de se expressar; quão difícil foi estar ali.
“Me doía muito. Eu precisava de algo para me apoiar. Não podia deixar que se repetisse.”
Deu certo. Não se repetiu por infindos e quase completos dez anos. Ela não deixou. A partir de então, a única coisa que lhe incomodava era sua enxaqueca geneticamente adquirida e intensificada pela demasiada preocupação em exercer seu papel de figurante cinematográfico, passando despercebida ao olhar curioso e prestativo do espectador. Ela abandonou todos os seus vestígios amistosos e sociais, inclusive as lágrimas. Nada a comovia.
“E afogava-se ao chegar em casa?”
“Este vício me ajudou muito, quando eu enfraquecia.”
“E agora, você não consegue mais voltar a antes.”
“Temo que não. Já faz tanto tempo.”
E decorreu-se muito tempo. O vício lhe acompanhara desde aquela relevante decisão em afundar-se no mais profundo de sua alma remanescente, em enxergar a superfície com aquele olhar vago, e não buscar um aliviante punhado de ar. E nem deixar que uma mão samaritana trouxesse-a de volta à tona.
“E agora?”
“Eu nunca reparei que isso me esgotava tanto.”
“Você pretende parar?”
“Vim aqui tentar descobrir isso.”
“Já foi um grande passo você ter nos procurado. Para quem passou anos sem buscar ninguém, a não ser o vício”
“Esse vício corrompe mais do que qualquer ser humano imagina. Muito mais.”
Fez-se o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que está prestes a gritar alguma coisa surpreendente e assustadora. Aqueles olhos cansados e sem brilho procuravam eloqüentemente a luz para voltar a viver. E após pouco menos de dez anos, uma lágrima amiga os deixou.
“Saiba que todos estamos dispostos a ajudar no que for preciso.”
“Muito obrigada.”
Ela desvendou aquele rosto meigo e desamparado que havia passado a elucidação inteira disfarçado por trás do microfone.
“Hoje é o dia em que inicio a minha jornada rumo ao abandono do vício solidão.”
A primeira lágrima emocionada encontrou o canto de sua boca, que evidenciava um leve sorriso de libertação.
“Completaria dez anos...”
Uma segunda lágrima desesperada atingiu o canto oposto da sua boca.
“...que não consigo amar.”
O recomeço.
“Boa tarde.”

Beatriz Noele

4 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

"[...] E ela sabia que a lambuja inicial seria o primeiro passo para o seu qüiproquó. [...]"
Se o texto acabasse aí ele já seria muito bom, mas você quis fazê-lo excelente, então deixou que ele fosse até onde as lágrimas desesperadas despencam dos tais olhos.
Nada mal. Nada!
Mas por pouco elas não despencam destes aqui também, hein?
Seja mais piedosa da próxima vez. huahuahuah
Um beijo desta rosa despedaçada.
Hahaha! =)

Unknown disse...

É impossível ser feliz sozinho...

=)

Bazar do Desapego disse...

Eu quero mais!! Vontade de saber ao encontro do que foi a terceira, quarta, quinta (...)lágrima? :)