quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Um envelhecimento precoce demais


Cheguei quando ela já dominava as quatro longas paredes daquela sala de espera. Fazia isso com total maestria. Usava flores em um vestido comprido, que esperançosamente buscava aqueles pés tão resumidos a quase nada. Os cabelos haviam sido divididos entre dois miúdos cachos. Vestia seu rosto com óculos que faziam os seus olhinhos parecerem enormes bolas de gude. Contudo nada a caracterizava mais do que aquela alegria tão desinibida, tão histérica e tão ávida pelos olhos e ouvidos daquela platéia anônima. O espetáculo, sem convite e sem preço, desenrolava-se entre esboços de canções autorais. As palavras compreensíveis, entre tantas inexplicáveis, pareciam formar algo como “... precisa se casar...”. Por um instante desconfiei que o Tom e a Luz dos olhos teus estavam ali também, mas a discrepância entre gerações e, sobretudo, entre o tom – agora minúsculo mesmo – original e o apresentado, eliminavam tal suposição.

Posteriormente, abandonava as métricas para convencer sua mãe – já tímida e escondida sob a clássica justificativa “- Ela só que chamar atenção”- de que aqueles pequenos pés faziam-na mais bonita quando descalçados. A fisionomia que compunha esse propósito parecia falar que presos daquele jeito os dedos sofriam demais. Que não era justo, não mesmo, que se mantivesse cativo o que, invariavelmente, permaneceria por perto quando livre. A sua progenitora não só não compreendeu como sussurrou ordens de educação e obediência nas orelhas que pareciam servir apenas para sustentar as duas pernas de seus óculos graúdos.

Não havia razões para abalar-se, provavelmente pensou ela. Abraçou, então, seu “vovozinho”, que sempre estivera ali, logo ao lado, para que ele escutasse mais uma vez o quanto ela o amava, e seguiu com o seu show. Mais algumas canções inéditas, alguns efeitos sonoplásticos e breves contatos com a platéia já não tão atenta. O cansaço ainda nem ameaçava abatê-la quando foi tomada pela incontida vontade materna de ir ao banheiro. Pediu licença e acompanhou sua mãe, construindo uma inversão no mínimo intrigante.

O silêncio de então era profundo, frágil. Nem do espaço 2x2 onde se encontrava vinha qualquer espécie de ruído. E, antes que aquilo começasse a ficar esquisito, ela veio, trazendo a esperança de performances adicionais. Mas não foi bem isso que se viu. Com ela trouxe apenas sua face empalidecida e algumas rugas anacrônicas. Sentou-se e permaneceu muda, sem qualquer explicação. Sua mãe sentou-se muito ao lado, pacata e sóbria. Os espectadores se entreolhavam em busca de coerência, mas aquilo parecia inevitável.

Entre tantas dúvidas – que sonhos foram podados, quais talentos foram reprimidos, quantos traumas foram criados e/ou por que daquele jeito – todas ficaram e corroeram os figurantes presentes. O desejo de recuperar aquela alegria inexperiente, que se dizia assim por sequer conhecer todas as faces opostas a esse sentimento, era unânime, mas também infrutífero. Nada renaturaria. Era essa a certeza de todas as expressões calejadas por diversas e infalíveis amarguras de uma vida com pelo menos dois dígitos. Nada renaturaria e a versão posterior seria sempre mais doída e menos ousada.

Custava ter esperado ela ouvir as palmas da platéia?

Rafaela Fernandes

4 comentários:

Beatriz Noele disse...

ainda dá tempo de aplaudir?
sensacional!

um beijo d'abelha.

Unknown disse...

Às vezes a crônica já vem pronta, só faltando escrever.
Mas poucas pessoas conseguem contar uma história tão banal de forma tão lírica assim.
Por isso que eu fico tão feliz ao ler seus textos.
Você é incrível e tem se tornado ainda melhor nesta arte!
Beijos!

Bazar do Desapego disse...

O Zé me indicou o blog, realmente as referências são verdadeiras: lindos textos!! Parabéns e boa sorte.
Meu bloguinho nasceu hoje, se quiser passa lá
http://pitadascotidianas.blogspot.com/

Leonardo disse...

perfeita, como a bizarra. soa até paradoxo. kkkkkkkkkkkkk