segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Do lado de cá


Disseram-me que o mundo estava de ponta-cabeça. Que o ser de humano tinha quase nada, que era mais um bichinho esquisito das cavernas, sem previsibilidade, sem limites e sem qualquer ensaio de respeito. E contaram, não por uma única vez, que eu era por demais boba e fraca e que bem antes de ser tarde, de ser noite, eu seria esmagada e debochada por um, ou tantos dos que acreditam que o nosso mundo hostil é dos astutos, dos infiéis, dos insensíveis e só deles.

Não acreditei. Não acreditei e trancafiei-me, convenientemente, no meu aposento azul. Nesse mundo onde os canalhas são doces e, por isso, quase irresistíveis, onde as crianças chatas são motivos para contos, as formigas compõem um modelo de vida invejado, samba é pretexto para hipérboles sinceras e a solidão está sempre tão perto, que a gente casou com ela. Não me recordo de ter esquecido alguma porta ou janela abertas, nem de ter feito qualquer convite. Até mesmo o sol há muito não entra aqui – e, se vistes a minha cor, não duvidarias disso -. Evitei algumas idéias de visitas, avisei que estava ocupada com coisa alguma e menti dizendo que vivia bem acompanhada do senhor ninguém. E eles também acreditaram.

Ah, não! Desista dessa cara de dó. Estar assim não é como estar na sua algazarra, mas também não é de um todo ruim. Vive-se conforme a sua lei, fala-se apenas na hora em que a sua voz não te irrita, deixa-se os cabelos desorganizados, usa-se roupas velhas e ninguém vai reparar e não se come exatamente o que quer, por meros motivos de saúde, mas se faz isso na velocidade e na hora que te convém.

Eu não me convenci das verdades que me sussurraram, achei que estava só no meu azul, jurei que tinha paz incorruptível e imaginar o horror que se instalou quando tudo isso se demonstrou ineficaz não é tão difícil assim, mas também não precisa me chamar de boba e fraca, que disso eu já estou sabendo. Em vez de proferir impropérios, experimenta imaginar o que faz alguém quando um total estranho entra não sei por onde, mexe em sei lá o que, talvez até coma do seu feijão e beba do seu leite matinal para depois sair contando que sabe de você até para quem não quer saber. E só depois que ele bate a porta você descobre que teve tempo para bagunçar toda casa, pintar alguns absurdos na sua parede e pôr um som barulhento, de péssimo gosto, que te traz uma tremenda dor de cabeça.

E depois que isso acontece? Depois é hora de acabar com a balbúrdia e arrumar esta casa. Jogar um sambinha amarelo que ponha cor na nova pintura das paredes, tomar um banho para amolecer a cabeça e fazer firme o coração, trocar a roupa e repaginar a alma. Abrir as janelas e destrancar a porta. Deixar que o sol entre para acabar com esse gelo e que a brisa escape para bagunçar essa ordem hipócrita. Quero mesmo é que o vizinho saiba mais e o que o estranho entre quando julgar por bem.

De repente é nessa hora que alguém vestindo roupas largadas toca a sua campainha - ignorando a idéia da porta aberta - e te traz uma flor no peito e um coração na mão. Então você estranha, sente-se vermelha e antes de achar tudo muito cafona aceita aquele triângulo pulsante a fim descobrir o que ele pode fazer por você no domingo à noite, na terça-feira engarrafada, no filme do feriado ou no auge daquela gripe desencorajadora.

Não quero saber quem é você, de onde veio ou o que sabe sobre mim. Só entre.

Entre só e encoste a porta.

Rafaela Fernandes

5 comentários:

Unknown disse...

Minha doce irmã, Rafa.
Suas palavras me trazem as lágrimas!
Acho um absurdo quando as pessoas que não são convidadas chegam e, não satisfeitas, se acham no direito de bagunçar tudo.

Mas a vida é assim..."Só sou eu pra colocar as coisas no lugar e o mundo inteiro pra bagunçar" (como diria nossa mãe).

A gente se tem, Irmã.
E a gente se sabe,
O que, pra mim, é tudo.

Nunca desista, nem esmoreça. Mas pode chorar no meu ombro, de vez em quando ;)

Amo você!

Mila Costa disse...

Queeeeeeeeee liiindo.
Vou logo pedindo permissão pra postar no meu blog qualquer dia desses, claro que com os créditos...Seu nome Rafaela Fernandes...Moça, você sempre me surpreende entrelinhas.Muito bom, mesmo.

Um beijo na ponta do nariz.
:D

Unknown disse...

Lindo Rafa! Suas palavras me convencem.

Leonardo disse...

Pois é, tb penso assim, apesar de ser mais individualista. Mas vejo o lado bom da coisa, minha casa está sempre arrumada! Beijo genialidade materializada e canalizada.

Beatriz Noele disse...

Ao contrário de Leo, minha casa (meu quarto, principalmente)sempre está meio bagunçado, mas não por estranhos, isso nunca.
Não deixem os estranhos bagunçarem seu quarto nem seu mundo!
Geralmente eles são chatos e se tentam arrumar, nunca põe as coisas no lugar certo, né?

Magnífico, as usual.
Beijo!