quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Um panetone, um bom vinho e só


Ela resolveu ignorar tudo o que lhe soava provável. A vizinha, mesmo não chamada a opinar, resolveu derramar seus achismos ali, no sofá da sala de estar. Disse que aquilo nunca iria funcionar, que logo feneceria e a garota iria se ferir novamente. Pobre garota, sempre semeia o fim dos seus casos justo assim que eles nascem, pensava a vizinha alcoviteira. Pobre vizinha, sempre afaga as bebedeiras do marido, as crises psicóticas do filho mais velho e a hiperatividade do seu único neto com os problemas das portas ao lado, respondia, em telepatia, a garota. Assim que a senhora terminou com seu discurso imbuído de causas exclusivamente suas, a moça pediu para ficar em par com a sua consciência. É, vizinha, só eu e ela, precisou reforçar a menina.

Quando lhe foi entregue a paz do eco, ela se pôs a escrever. As impressões deslizavam cabeça, peito, braço, ponta dos dedos e bico da caneta com uma fluidez espantosa, qual as confissões de um beberrão - recém traído por sua Amélia – ao garçom-vítima mais próximo. Em poucos instantes, sem qualquer sinal de culpa ou pudor, ela foi se contando ao verso de uma prova do seu pré-vestibular, usando uma letra torta e quase incompreensível. Colocou lá que precisava dele, assim, com essas palavras. Mas que não queria aquilo que a vizinha via. Precisava – e desejava - a versão mais inédita que havia naquele moço.

E explicava, como se falasse com o nariz dele no seu, que queria tudo que existia para lá do seu ar cortês de sempre, das suas frases de auto-motivação fracas, dos seus pés calçados e firmes demais no chão, do seu olhar fixo que implorava por um rumo convincente e dos seus abraços compridos e cheios de espaços para o vazio. E, enquanto ia deixando isso ficar em um papel, lembrava-se das palavras da vizinha para se lembrar novamente de que não queria mais resistir àquele homem e que sequer sentia-se tentada a reclinar pelas razões racionais daquela mulher de chinelos felpudos.

Escrevia e riscava imediatamente algumas pieguices e umas juras de amor até amanhã, como se temesse que alguém, quem sabe ele, visse e descobrisse como aquele contexto a fazia mulherzinha. Ela sabia ser franca consigo. Sabia bem de seus sentimentos e eles não eram confiáveis nem muito menos estáveis. Ela, pois, não se dava o direito de envolver alguém neles tão estreitamente, se amanhã tudo poderia não fazer mais sentido algum. Ia, então, adiando o momento de fazer da paixão uma dinâmica de dois e distraindo-se com as suas palavras perfumadas e com os seus disfarces metafóricos.

No momento em que aquele verso de folha mostrou-se repleto, ela sentiu que era hora de parar. Releu tudo que contava as palavras, percebeu que algo se perdera no caminho - talvez no peito, quem sabe no ar -, não se importou, refez tudo com uma letra mais decifrável, vestiu uma roupa fácil, colocou o papel no bolso mais fundo e saiu. Foi até a casa dele. Constatou que ele estava, colocou a folha debaixo da porta, tocou a cigarra - depois de rir de si mesma e da sua tolice - e escondeu-se antes de ele aparecer. Observou-o sair e procurar inutilmente o remetente na folha e nas redondezas. A curiosidade dele, conforme ela previu, fez com que a leitura se desse já, com um pé na calçada e outro ainda em casa. Ela pôde ver o sorriso ir escapando daquela boca com jeito de maçã. Constatou que dessa vez era um sincero, até meio incrédulo, meio emocionado... Inédito como ela desejou, enfim. Ele não ia chorar, ela sabia. Mas iria logo saber quem escrevera e isso bastava. Você agora sabe de mim, falou ela baixinho, como se houvesse chance de ele escutar.

Logo que viu e ouviu a porta fechar, a garota cruzou a esquina. Comprou um panetone e um bom vinho e voltou para casa. Voltou para si, para um quarto vazio, uma televisão sem som e um som sem fim. Lambuzou-se com a sensação que não sabia até onde era cisma, até onde era coisa de coração e que, por bem, preferia nem saber. Queria apenas, e não era pedir muito, que o sorriso daquele homem durasse na sua memória pelo menos até que ela acabasse com o panetone e o vinho acabasse com ela. E aí sim, Papai Noel. Aí sim e só aí ela teria o tal do feliz natal.


Rafaela Fernandes

3 comentários:

Birra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Birra disse...

Adorei, adorei!
Engraçado que, eu escrevi meu texto antes de saber que você tinha escrito um e já colocado aqui. Só fui reparar depois que tinha postado o meu. E, apesar da diferença, até que há um toque semelhante no nosso Natal.

Nada melhor do que ver o sorriso ou ouvir a voz de quem se gosta, não?

Então, posso dizer feliz Natal.
Beijos, minha flor!

Bia Noele

Anônimo disse...

Digamos que esse é um Deja Vu meio torto, mas tão lindo quanto. hehehe...

Beijinho, amiga fantasiosa!