domingo, 26 de outubro de 2008

Não, você não é doce


Larga o meu braço. Isso, já.

Abandona as minhas pernas, deixe que dos meus pés seja o que eu quiser.

Estou pedindo para devolver o meu juízo, o meu querer e o meu dever que as horas ainda não disseram que repousariam sob mim.

E não me faz essa cara mendiga, não levanta as sobrancelhas desse jeito nem me lança esses braços elásticos, pois eu disse a todos que iria. E eu preciso ir ver o que há do lado de lá, saber das músicas que eles ouvem, das bobagens que eles contam e das indecências que ruminam. Não que isso mude o lado de cá, mas eu desejo tanto saber.

Quero mudar esta roupa, lavar e largar estes cabelos, guardar meus óculos, pintar os olhos, esquecer a dor e fazer qualquer um chorar de rir. Fazer o garçom trabalhar até mais tarde, até a comida esfriar enquanto a bebida esquenta e eu conto os meus contos cheios de fantasias de menina ao mala da cadeira ao lado.

Deixa, só por hoje, que eu beba até esquecer os sentidos e virar uma sinestesia viva. Que suba na mesa e cante Odair José em alto e desafinado som. Amanhã, com ajuda de qualquer sede e qualquer dor de cabeça, você me conta o que houve debaixo daquele teto. E eu juro, juro mesmo, que não me importarei. Quando o azedo assumir todos os gostos, todas as comidas, lembrarei-me da certeza de que não há sabor pior do que o do jejum.

O que não parece justo é entregar as minhas décadas a esse pote de amarguras que é você. Nem é certo deixar os íntimos virarem estranhos e os estranhos mais estranhos ainda, se a gente não nasceu pra ser dueto. Se o nosso par é brega e inútil. Se enquanto você me segura, tão firme e tão convincente, eu só sei esperar o dia em que você vai desistir de mim.

Você não é doce. Não do tipo que pode ser posta distante, para ser sentida apenas na ponta da língua, quando a fome faz salivar. Assim você seria uma delícia. Você é amarga e fica tão próxima à garganta que tão logo faz sufocar e doer.

Então sai depressa daqui, solidão.

Sai porque hoje eu não quero ver você nem vestida de chocolate.

Rafaela Fernandes

11 comentários:

Beatriz Noele disse...

um bom texto, cuja melodia perfeita para acompanhar a leitura seria "Doce Solidão", não acha?

ah, minha flor.
se descobrissem que mergulhar na nossa, fosse um doce...
tudo estaria resolvido nessa compota. :P

um beijo
me ajude a descobrir quem roubou minha imaginação!

Birra disse...

Belha, acho que você quis dizer:
Apesar de você achar as mesóclises antipáticas e eu achá-las um charme, seu texto dá pra tragar.
uahuahuahauha

A compota espera pelas suas próximas birras com braços de saudade, querida.
E achar sua imaginação não vai ser nada difícil, ela é grande demais pra ser escondida em um bolso ou debaixo do tapete. =)

Um beijo!

Leonardo disse...

tem dias que ela é doce como um chocolate meio amargo.

Beatriz Noele disse...

deixe de birra, viu? que seus textos são sempre ÓTIMAS tragadas pra mim, com todo o prazer que tem-se direito!
:P

Mila Costa disse...

Eu não conheço, mas pelo que li, estamos na mesma...haha!
Escreve tão bem que fiquei com vergonha de ter um blog...Fato.
Você visitou meu orkut...Seja sempre bem vinda ;)

Anônimo disse...

Adorei a musicalidade, Rafa! Não sabia que escrevia! =D

beijos.

Debora..

Bazar do Desapego disse...

Lindíssimo texto!!
Trecho espetacular..." Quando o azedo assumir todos os gostos, todas as comidas, lembrarei-me da certeza de que não há sabor pior do que o do jejum "

Beijos

Unknown disse...

adorei o texto, rafa, bastante poético. acredito que solidao seja um pouco necessaria, senao a vida fica doce demais.

vc e bia tao de parabéns pelo blog!

bjao

Anônimo disse...

Foi o final mais birrento que eu já li. =) E só para constar: Camelo estará em Sampa, semana que vem. Rá, rá, rá.

Anônimo disse...

Concordo com quem disse por aí que esse amargo é necessário, mas, paciência, não é? Permita-se sentir o doce, amiga! Daqui a pouco você terá uma figura magrinha ao seu lado, mas que nesse aspecto sempre terá cabeça de obesa mórbida. huahuahua... Como já diria a minha querida mestra Clarice, 'eu quero tudo, agora'!

Um beijo e um petit gateau pra você!
=P

Anônimo disse...

Caracaa.. Que textooooooo.. Final surpreendente..

Rafa PARABÉNS!!

Desconhecia esse seu talento. E esse espaço aqui? Frequentarei mais vezes..

Beijooss poetaa.