domingo, 16 de novembro de 2008

Se eles não vêem, a gente inventa


Acordou, olhou-se miseravelmente ao espelho e achou.

Ali estavam os olhos através dos quais se via um reflexo distorcido e duvidoso. Os olhos que, vermelhos como a fumaça da noite anterior e manchados pelo preto que já precisava de retoque, pareciam prostituídos quando vistos por eles mesmos. Uns que eram intrusos e infames quando contavam ao mundo que enxergavam a euforia das ruas em um quadro descolorido, em uma arte abstrata de mau gosto. E igualmente impertinentes quando queriam obrigar os outros olhos, os dos outros, a enxergarem sob sua lente mofada. Olhos malditos, marrentos.

Viam mal qualquer coisa que não estivesse muito próxima e, portanto, declaravam-se cegos para as tais. Ficava mais fácil para explicar. Mas, se do distante, que era distante demais, não enxergavam nada além de um contorno impreciso, imaginavam. Ah, e que perigoso era fazer imaginar quem foi feito para a tarefa de ver. E era perigoso porque era fácil acreditar naqueles olhos quando, derretidos de ilusão, supunham que o que desejavam ver era perto, estava seu. E fantasiavam que o muito que não viam compunha um todo generoso, um todo de carinho e devoção. Não havia fingimento nem mau tempo no lugar em que esses olhos não viam. Era um não ver sincero e inspirador.

Mas às vezes criar trazia aos ditos olhos umas e tantas inevitáveis lágrimas de angústia e, abarrotados, eles pestanejavam para fazê-las do mundo. Elas caiam para lavar aquele rosto de mentiras enrugadas e contar que, agora, tudo estava quieto e sereno, como a calmaria que precede uma próxima tempestade.

Acordou, olhou-se miseravelmente ao espelho e teve certeza: precisava encontrar os seus óculos.

Rafaela Fernandes

5 comentários:

Camila Costa disse...

A dona moça escreve muito bem, pra uma cega.
Seu teclado é em braile? Nam.
haha, brincadeirinha.
Tô sempre por aqui.
Parabéns pelo talento!
;*

Camila Costa disse...

Ah e por via das dúvidas, ande sempre com os óculos, assim não terá que criar o que foi feito pra ser visto, porque a verdade pode até ser relativa, mas quando nos iludimos o sentimento que nós machuca é bem real.

Anônimo disse...

Lindo texto,feito uma lágrima densa que escorre pelo rosto.Por fim, um final surpreende!Se a vida é difícil: melhor comer com pimenta!(rsrs)

Beatriz Noele disse...

Flor querida, mais um belo texto para iluminar a vida desse blog.

A gente não é sonhadora, a gente só é míupe. Difícil nosso coração (e o mundo) entender isso, né?

Beijo, querida.

Leonardo disse...

fico satisfeito ao me olhar no espelho e me considerar normal, também pudera, no espelho né...