Ele acorda trepidante. Parecia-lhe que a hora, que na verdade ainda nem chegara, já havia passado do ponto há muito. Ignora a constatação que vem em seguida, da sua janela. A de que o céu ainda não faz sol e de que os passarinhos ainda roncam, em vez de cantar. O universo conspira a favor do sossego da sua cama, mas o menino resiste, quer começar cedo. Já acordou e já sorriu para o quase-dia, dando sinal de que aquele despertar não tinha mais volta.
Ainda com os olhos amiudados pelo sono, lava o rosto marcado pelos sonhos da última noite, prepara as mãos calejadas pela sobrevivência e lança-as à obra. Barro bruto, com jeito de coisa alguma. Frio, como se assim declarasse sua carência de alma capaz de fazer um calor qualquer. E o menino, agora já assumindo jeito de homem, põe em mãos a responsabilidade pela imprevisível criação.
Molha aqui, modela assim. Remove dali, acrescenta onde der. Há algum racionalismo sim, mas a emoção revela-se majoritária em cada singelo toque. As mãos cuidadosas – e um tanto trêmulas pelo binômio desejo-medo - dão ao barro moço curvas cheias de boas vontades. Das mãos criadas partem braços frágeis e daí um corpo inteiro, cujo desenho tem o formato das mãos de onde tudo partiu. Não duvide da impressão, trata-se mesmo de um ciclo imbuído de vício. Tudo começa onde tudo termina para começar de novo.
Antes que alguém questione, o moço reforça: esta obra não nasceu por um fim e vai viver da beleza da repetição. E a obra, que acaba de ganhar um coração (ou de redescobrir o seu, pouco importa), garante que, agora, o que mais sabe desejar é permanecer nas mãos desse que a criou. Não por mera gratidão, mas por sincero querer. Quem te disse que barro não ama?
Rafaela Fernandes