Larga o meu braço. Isso, já.
Abandona as minhas pernas, deixe que dos meus pés seja o que eu quiser.
Estou pedindo para devolver o meu juízo, o meu querer e o meu dever que as horas ainda não disseram que repousariam sob mim.
E não me faz essa cara mendiga, não levanta as sobrancelhas desse jeito nem me lança esses braços elásticos, pois eu disse a todos que iria. E eu preciso ir ver o que há do lado de lá, saber das músicas que eles ouvem, das bobagens que eles contam e das indecências que ruminam. Não que isso mude o lado de cá, mas eu desejo tanto saber.
Quero mudar esta roupa, lavar e largar estes cabelos, guardar meus óculos, pintar os olhos, esquecer a dor e fazer qualquer um chorar de rir. Fazer o garçom trabalhar até mais tarde, até a comida esfriar enquanto a bebida esquenta e eu conto os meus contos cheios de fantasias de menina ao mala da cadeira ao lado.
Deixa, só por hoje, que eu beba até esquecer os sentidos e virar uma sinestesia viva. Que suba na mesa e cante Odair José em alto e desafinado som. Amanhã, com ajuda de qualquer sede e qualquer dor de cabeça, você me conta o que houve debaixo daquele teto. E eu juro, juro mesmo, que não me importarei. Quando o azedo assumir todos os gostos, todas as comidas, lembrarei-me da certeza de que não há sabor pior do que o do jejum.
O que não parece justo é entregar as minhas décadas a esse pote de amarguras que é você. Nem é certo deixar os íntimos virarem estranhos e os estranhos mais estranhos ainda, se a gente não nasceu pra ser dueto. Se o nosso par é brega e inútil. Se enquanto você me segura, tão firme e tão convincente, eu só sei esperar o dia em que você vai desistir de mim.
Você não é doce. Não do tipo que pode ser posta distante, para ser sentida apenas na ponta da língua, quando a fome faz salivar. Assim você seria uma delícia. Você é amarga e fica tão próxima à garganta que tão logo faz sufocar e doer.
Então sai depressa daqui, solidão.
Sai porque hoje eu não quero ver você nem vestida de chocolate.
Rafaela Fernandes